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São José Carpinteiro, Georges de La Tour, Louvre |
Depois de longo período de doença, meu marido vai
recuperando as forças, desejoso de voltar às atividades. Continua com a mente
ágil e fértil, mas tudo parece acontecer a passo de lesma, e os pensamentos
surgem mais lerdos, ponderados e pesados. O progresso é medido por um passo
para frente, dois para trás, dois passos para frente, um para trás, e enfim
descobrimos um pouco de progresso a cada dia. Meu marido passou meses na cama,
impossibilitado de andar. Passou a dar alguns passos e começou a progredir
fisicamente, mas a fraqueza e a dor estavam tão presentes que esquecia tudo
mais. A vida girava em torno de três assuntos sempre presentes: infecção
insistente e difícil de ser debelada, fratura de duas vértebras, fraqueza
generalizada. Esses assuntos causavam
dor insuportável. C. S. Lewis chamava a dor de “megafone de Deus”, mas
na hora que estamos ouvindo barulho insistente desse alto falante, muitas vezes,
queremos tapar os ouvidos ao som. Outro pensador disse que a doença é bênção
disfarçada, mas tenho que admitir que, às vezes, eu achava difícil imaginar a
bênção debaixo do disfarce acre e cansativo que pairava sobre nós vinte e
quatro horas por dia.
Esta experiência lembra muito minha própria vivência
cristã, em que, como o apóstolo Paulo fez em Romanos 7, confesso que não
consigo tudo o que pretendo — “em mim... não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não,
porém, o efetuá-lo”.
Antes desta experiência, eu
romantizava um período de estada hospitalar como oportunidade de descansar dos
afazeres normais, ter mais tempo para ler a Bíblia e orar, aprofundar as raízes
da leitura, da meditação e do pensamento. Nada disso. Insônia ou sono picadinho
em terreno estranho não é descanso—nem para o paciente nem para seu companheiro
(no caso, sua companheira 24 horas por dia: euzinha).
Somos gratos porque em meio às perguntas e
incertezas de cada momento, uma presença não nos deixou: o sopro suave da voz
de Deus por sua Palavra e seu Espírito. Ele sussurrava no meio da barulheira de
atendentes levando macas de um lado para outro, ao elevador de um andar para
outro lado, enfermeiros procurando veias viáveis para mais uma injeçãozinha que
não vai doer naaada, pessoas
trabalhadoras no hospital, desde médicos fatigados por plantões e miríades de
pacientes, enfermeiras habilidosas, atendentes impacientes. Mas tenho de
confessar que nem sempre eu estava disposta a ouvir sua voz. De vez em quando
usava o artifício de quem precise de aparelho auditivo para ouvir com clareza e
não querer escutar: tirar o aparelho
e só ouvir o que me agradasse.
Passaram as fases de cadeira de rodas, auxílio para
banho, bebidas no copo de canudinho. O primeiro período de “cuidados em casa”
não pôde ser em nossa casa, mas no apartamento de estudante de nossos netos, aonde
vinha enfermeiro/a duas vezes por dia para aplicar medicações, e recebíamos com
um pouco mais de liberdade a visita de alguns irmãos em Cristo—até que a
desconfiança de uma infecção mais séria nos levou de volta ao hospital. Todo o
tratamento se intensificava, repetia, mudavam algumas medicações—e foram longos
meses antes que pudéssemos ir para nossa casa, onde Wadislau conseguia mais
mobilidade com o auxílio de bengala.
Em nossa própria casa, primeiro foram dias em que
ficávamos sentados na varanda ou no banco do jardim, conversando, lendo a
Bíblia, orando, observando as aves e as flores, sentindo o cheiro do capim
recém cortado e o perfume de tudo. O enfermeiro de home care só vem uma vez por dia aplicar a medicação no cateter. O
corinho que vinha à mente era o do arco da velha: Sempre melhorando, sempre melhorando... Mas a realidade era um
passo pra frente, dois passos para trás...
Hoje a melhora é visível. Wadislau não tem mais cara cinzenta de quem
está com um pé na cama e outro na cova. A inquietação saudável faz parte do dia
a dia. Ainda há necessidade de longos períodos de descanso. A cabeça não está a
mil por hora, mas está funcionando – e o coração (o cerne da alma, como também
o órgão que manda sangue para o corpo
inteiro) alegre aformoseia o rosto. Há uns sons antes raros: marteladas,
lixadas constantes, serrote e furadeira elétrica – sons de madeira e de
materiais para transformá-la em coisa mais elaborada. São sons de lixa, lima,
grosa, madeira velha e tosca transformada em construção de sonhos, de criação
de objetos úteis e recriação da vida que estava em pausa. Hoje a vida pulsa: o
coração está a 12 por 8 e a oficina temporária em que nossa área de
churrasqueira se tornou tem um homem que se alegra em pregar, serrar, cortar e
amarrar, pensar e fazer.
Ainda são
poucas as ocasiões em que prega a palavra em público—nas três primeiras pregações
em seu “retorno” à igreja (se bem que na verdade nunca saiu dela), pregou
sentado. Mas na mais recente, pregou a palavra de Deus em pé, com força, como Salomão
descreve: “Procurou
o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão palavras de
verdade. As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem fixados as sentenças coligidas, dadas pelo único
Pastor” (Eclesiastes 12.10-11).
De vez em quando, vindo trazer-lhe café ou um suco, vejo
meu marido em sua tarefa de marceneiro pegar, com uma comprida pinça um objeto
que caiu no chão ou buscar outro que não está à mão, eu penso que meu papel de
auxiliadora mudou: sou um pouco ajudante de um carpinteiro como foi o Mestre
dele e meu.
Lembrei que as referências a Jesus como carpinteiro,
de Mateus e Marcos, têm pequenas diferenças de perspectiva. Em Mateus, os
judeus perguntavam de Jesus: Não é este o
filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos, Tiago, José, Simão e Judas?” (Mt
13.55). Já Marcos relata que Jesus acabara de pregar na sinagoga, e os judeus
“ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: Donde vêm a este estas coisas? Que
sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas
mãos? Não é este o carpinteiro ...?”
Com certeza Jesus jovem aprendeu de seu pai adotivo, José, o ofício de
carpintaria. Todo estudante e praticante da Palavra, na cultura judaica, tinha
de ter também um ofício prático com que ganhar a vida, e a carpintaria passou
de José para Jesus. Mais do que uma estrutura de casa, uma porta bem firmada,
uma mesa para uma família ativa compartilhar o pão, ou mesmo um bom cabo de
machado—o carpinteiro usava suas ferramentas para burilar e aperfeiçoar objetos
úteis que eram sólidos sonhos das pessoas.
Quando
estudávamos no Seminário Palavra da Vida, os homens recebiam aulas práticas de
marcenaria com o missionário Haroldo Reimer, que era também professor da
matéria de “Vida de Cristo”. Wadislau aprendeu naquela oficina de marceneiro
muita coisa de vida cristã – e confeccionou os primeiros móveis de nossa casa
de estudantes no instituto bíblico. Com o passar dos anos, Lau sempre usou o
que aprendeu inicialmente com Haroldo. Produziu mesas, poltronas, biombo,
cadeira de preguiça, uma casinha de boneca de Susi para nossa filha, armário e
muito mais. Haroldo Reimer, atualmente aos noventa anos, ainda toma madeira
tosca e cria grandes e pequenos objetos de uso e de arte. Acho belo o
testemunho do carpinteiro/marceneiro/fotógrafo/evangelista e pregador do
evangelho ancião, que transmitiu a outros missionários e pastores/mestres que
hoje passam adiante o bastão para ainda outros discípulos. Foi na aula de
carpintaria que Wadislau, jovem, cortou o dedo na plaina elétrica, mas
recuperou o uso e ainda aos setenta anos tem mãos ágeis, toscas e ternas, que
formam coisas belas. Atualmente o “belo” é uma bancada de marcenaria que
custaria mais de novecentos reais se comprada em loja especializada. Está praticamente pronta.
A
história do Carpinteiro iniciou numa manjedoura e culminou numa cruz. Queira
Deus nossa história inicie na adoração do menino na manjedoura e mantenha em
vista os sofrimentos e a glória da cruz, tempo sem fim!
Elizabeth Gomes