São José Carpinteiro - Georges de La Tour, Paris, Louvre |
Cena um: após o culto vespertino de um
dia cheio tomado pela conferência missionária, três pastores e suas esposas estão
em uma pizzaria ao ar livre. Um menino com não mais de oito anos vem até a mesa
para pedir uns trocados e, quando um dos pastores pergunta onde estaria sua mãe
e quem havia deixado que ele estivesse na rua a essa hora, ele responde:
– Tá’li esperando meus irmão trazê o dinheiro.
Ela que mandou a gente trabaiá nessas hora que gente rica come e tá cansada.
Eu
era uma das mulheres e fiquei, como as colegas, indignada com o trabalho a que o
menino era submetido a essa hora da noite. Tive vontade de dar um pito na mãe por explorar a
vulnerabilidade do filho, mas isso não resolveria o problema. São centenas,
milhares de mães, pais, tios e outros parentes que usam crianças como fonte de
renda, explorando a compaixão alheia. Não me lembro de como acabou a cena. Estávamos
condoídos pela situação que se repete por todo o país, apesar dos programas
assistenciais e assistencialistas do governo e das tentativas de cristãos para
mudar o estado de coisas por meio de um evangelho ativo que corrobora a pregação das
boas novas de Cristo. Tem muita criança pelo Brasil afora que garante “os trocados”
dos pais mediante seu trabalho – esmolando, limpando parabrisas de carro, vendendo
drops e chocolates ou, pior ainda,
vendendo o próprio corpo mal iniciado na adolescência. É a escravidão do mais
fraco oprimido pelo mais forte.
Cena dois: um menino em zona rural
atrela um bode ao carrinho feito pelo pai carroceiro a quem imita levando sua
pequena carga até um destino vizinho. O menino tem orgulho do trabalho
realizado depois das aulas e, apesar da idade, faz serviço útil e bem feito que
lhe dá mais do que um senso pessoal de valor. Quando foi mostrada sua história
no programa rural da TV, imediatamente diversas pessoas se manifestaram contra
a “exploração do trabalho infantil”.
Cena três: uma mãe hospedada na casa de
amigos observa que os filhos da casa prontamente tiram a mesa, lavam, enxugam e
guardam a louça, e se explica à mãe hospedeira:
– Em
casa meu marido não admite que nossos filhos ajudem na cozinha ou arrumem suas
próprias coisas. Ele diz que o trabalho de criança é estudar e que adulto não tem
o direito de exigir que meninos façam qualquer trabalho doméstico.
Trabalhei
por alguns anos como assistente social de língua portuguesa para uma agência de
defesa da criança abusada e negligenciada, em Somerville,
Massachussetts. Era triste averiguar situações de abuso
físico e psicológico que algumas crianças e adolescentes sofriam. Esses abusos
ocorriam não apenas em famílias de baixa renda, mas também em famílias
abastadas que “davam tudo para seus filhos”. O horror do abuso sexual deixa
marcas para toda a vida. É injustificável a violência do abuso físico a que
pais, mães e responsáveis submetem as crianças, quebrando-lhes braços,
queimando-as com cigarros ou ferro elétrico, ou lanhando-lhes as costas com
surras que derrubam até gente grande e forte. Nas escolas, as crianças eram
instigadas a delatar qualquer abuso que tivessem sofrido, verdadeiro ou produto
de mentiras para obtenção de alguma vantagem. Muitas vezes a única solução que
o Estado tinha era retirar a criança do “nocivo convívio familiar” e colocá-la
sob o cuidado temporário de famílias substitutas pagas para isso. A fim de se
qualificarem a esse trabalho, os “pais substitutos temporários” recebiam
treinamento psicossocial dado pelo departamento de serviço social do governo
dos Estados Unidos e pagamento por cada criança sob seus cuidados. Supostamente
eram visitadas a cada mês para reavaliar a situação com vistas à recondução aos
progenitores. As crianças recebiam dinheiro para roupas, calçados e pertences
pessoais – um “bom dinheiro”, muito mais do que teriam se estivessem vivendo
com os pais. Cria-se assim uma indústria de assistência à criança em que os
pais substitutos lucram, as crianças perdem os vínculos familiares e, além da
vitimização real, desenvolvem um senso inflado de vitimização juntamente com um
senso de “direitos” (entitlement) sem
um mínimo de responsabilização pelos próprios atos, atitudes e faltas.
Foram
quase dois anos na assistência de crianças e foi com alívio que passei para um
trabalho duro, mas menos sofrido – com
adultos portadores do vírus HIV. Contudo, valeu a lição. Nas situações de abuso
ou negligência infantil, sequer um caso havia de serem forçadas a trabalhar. Antes,
tudo era lazer e divertimento – mesmo no trabalho escolar. Meu coração se condoia
ao pensar nas muitas crianças brasileiras, mendigando moedas e migalhas junto à
mãe ou tia, dormindo ao relento e sob marquises de imponentes prédios ou pontes.
Apoio os esforços de cristãos conscientes que procuram mudar o quadro. Amigas
assistentes sociais – como Alva, Mary, Júnia – desenvolviam trabalho compassivo
em prol da criança, ensinando aos pais (quando existentes) a pescar em vez de lhes
dar o peixe podre do assistencialismo – dando chance às mães de cuidar, alimentar,
educar e manter a criança na escola.
Realmente,
o primeiro trabalho da criança é estudar, e ela tem de ter condições e
estímulos ambientais para isso. Infelizmente tanto o ambiente quanto o estímulo
são pouco propiciados para grande parte de nossas crianças. Mas um aspecto da
educação que aquela mãe da cena três ignorava ao defender o ócio lúdico do
filho é que é responsabilidade primeira dos
pais ensinarem os filhos para a vida – não apenas mandá-los para uma boa
escola. A criança aprende pelo exemplo: pais que valorizam o estudo e não tem
medo do trabalho terão filhos com gosto de estudar e trabalhar. É questão de criar um gosto permanente (Provérbios
22.6: “Ensina a criança no caminho que deve andar, e ainda quando for velho,
não se desviará dele”).
Brincar
também é trabalho da criança – com a brincadeira e o brinquedo ela aprende por
imitação, em doses adequadas para a idade, sobre todas as coisas da vida.
Proponho também que essa brincadeira inclua
boa dose de trabalho: não apenas brincar de professora, bombeiro ou médica, mas
de ajudar nas tarefas do cotidiano. “Gosto de ajudar” era uma cantiga que hoje
poucas crianças conhecem – porém, o senso de valor infantil cresce quando o
menino e a menina aprendem a cuidar e guardar seus brinquedos. Com isso,
ensinamos-lhes a ética de Gênesis 1.28, de cultivar e guardar a terra, de ter
domínio sobre a natureza e todas as coisas criadas.
O
menino da cena dois não estava sendo forçado ou sendo abusado com o trabalho. Com
certeza seu pai conseguia transportar uma carga maior sem atropelos – mas o
garoto aprendia e brincava ao trabalhar
de verdade com sua carrocinha. Aprendia na escola, na roça ou em casa, e a
carga lhe era leve por ser prazerosa. Responsabilidade diária, sim. Ajuda
verdadeira ao pai, sim. Esse trabalho infantil que realizava não era abuso – era
melhor que andar de bicicleta ou na roda gigante!
Quando
ensinamos a criança a expressar criatividade nas atividades corriqueiras – a limpar
o que sujou, a arrumar o que desarrumou, e a valorizar um trabalho bem feito – não
a faremos sentir-se abusada, mas, sim, importante e participante da família, da
vida cotidiana. Ela aprenderá habilidades que nunca deixará de usar.
Claro
que pai e mãe não podem dar aos filhos tarefas acima de sua capacidade nem lançar
sobre eles responsabilidades que os próprios pais não queiram desenvolver. Às
vezes, deixar a criança ajudar dá mais trabalho do que fazer a tarefa sem ela (por
exemplo, chão molhado pela criança que orgulhosamente lavou sozinha a louça), mas
o motivo de deixá-la participar do trabalho não é a perfeição e sim a educação
na justiça e no amor. Mesmo se a família tiver ajudante para os serviços
domésticos, será importante, por exemplo, que a criança aprenda a estender sua
própria cama. Lembro-me da vergonha de uma moça de quinze anos quando pela primeira
vez na vida teve de arrumar a cama, em um acampamento de jovens, e não sabia
como! Arrumar a mesa para o lanche e lavar alguns copos e pratos deve fazer
parte do currículo de cada criança. Quando for maior, saber esquentar uma
comida ou fritar um ovo serão úteis, mesmo se tiver sempre quem o faça por ela.
Nunca me esquecerei do orgulho de minha filha de sete anos, ao esquentar, por à
mesa e servir o jantar a seu avô que nos visitava, antes de a mãe chegar da
faculdade.
Uma das mais preciosas lições
que podemos dar às crianças é aquilo que Jesus disse quando interpelado por
trabalhar no sábado: “Meu Pai trabalha
até agora, e eu trabalho também” (Jo 5.17). Quando Jesus lavou os pés dos
discípulos (trabalho para os servos menos valorizados na escala hierárquica) e
Pedro protestou, Jesus insistiu que dava o exemplo – que o servo não é maior do
que o senhor e o discípulo será bem-aventurado se praticar o que aprende do
Mestre (Jo 13.15-17).
Uma
das grandes diferenças do pensamento protestante e do pensamento escolástico
romano estava na perspectiva do trabalho. De um lado os reformadores,
destacando a salvação somente pela graça mediante a fé, independente de obras,
davam valor ao trabalho, por mais humilde que fosse, vendo toda obra bem feita
como cumprimento do chamado de Deus. De outro lado, a graça de Deus sendo
comprada mediante méritos e pagamento, sendo o ideal contemplativo obtido no
ócio[1]. Na
prática, países estabelecidos por protestantes tinham forte ideal de
operosidade, enquanto em países de índole romana o ideal era o de ganhar
dinheiro e posição suficientes para colocar outros para trabalhar no lugar dos
senhores (e das senhoras). Isso se reflete na maneira como vemos a vida e como
ensinamos nossas crianças.
Temos
de dizer “não” ao abuso de crianças em qualquer forma que ele se instaure.
Temos de dizer “sim” à criança quanto à valorização de seu estudo e
aprendizado, sua vida lúdica e também sua tarefa de aprender a trabalhar,
cuidar e criar conforme Deus designou desde a infância deste mundo criado por
ele. Não exploramos as crianças quando as ensinamos a desenvolver tarefas e
responsabilidades na vida – preparamo-las para vidas mais criativas, úteis,
completas e plenas, da meninice à velhice!
Elizabeth
Gomes
[1] GUINNESS, Os, O Chamado. São
Paulo: Cultura Cristã, 2001, “A distorção católica e a distorção protestante
pp. 39-40 e pp. 47-48.
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