Lá na pequena Bocaina, os quase setenta anos do seu Garcindo fazem gosto. Bole na horta,
inspeciona a cozinha da dona Déia, paga
um tempo no quarto munido de óculos e Bíblia, larga o corpo na cadeira de
preguiça do alpendre e vê passarem os amigos e a semana. Aqui e ali, um dedo de
prosa com o seu Amâncio, vizinho da esquerda que havia se convertido, com o da
direita que ainda reluta um pouco, ou com um e outro conhecido. Mudança, muito
pouca. Mas a espera do sábado com promessa de domingo enche-lhe a alma e os
dias. Sábado tem filhos e netos chegando, reunião de famílias amigas “para
falar de Cristo” e, domingo, a igreja.
Seu Garcindo conheceu
a fé ainda moço na fazenda onde ouviu um pregador falar de “Jesus Cristo, do
povo de Deus, e de mim”. Vida
simples, devoção profunda, muito gosto de orar com e por dona Déia, de orarem juntos pelas famílias já saídas de casa, e
pelo pastor e “irmãos da igreja”. Um evangelho simples, entendido e obedecido em
oração.
Outro dia, vieram uns moços de igreja da Capital para passar
o fim de semana. Encheram as casas dos crentes com histórias e risos parecendo
assuada de passarinhos. Tinha de tudo, pardal, andorinha, sanhaço, beija-flor, corruira...
e também falavam de tudo, de folha de alface e quirera até painço e farinha de
minhoca. Em igrejês, havia um tal de louvor diferente, umas coisas de célula, oração de poder, estratégia de
crescimento de igreja – “tudo muito longe do meu bico”. Umas aves mais
sofisticadas falavam de neoisso, neoaquilo, quem era mais penado, mais
colorido, mais bicudo...
Seu Garcindo ficou
a semana inteira com a visita enroscada na cabeça “que nem colerinha no visgo”.
Eram os trilados que a passarada usava para cantar na mesma língua, “bem
afinados, mas muito novidadeiros”, as críticas dos urubus aos gorjeios dos curiós,
os eu acho e eu preciso que era mais para ter o que ciscar do que para comer.
Enquanto regava o canteiro, arrancava uns matinhos e juntava
mais terra ao pé da planta, seu Garcindo
dava tratos à bola, digeria uns pensamentos e dava lá suas tiradas com os próprios
botões. Na sexta-feira, depois das orações, ele disse à dona Déia:
— Sabe, mulher, não sei se vou conseguir ser crente do jeito que os crentes da
Capital falaram; já devo estar velho pra isso. Pensei, meditei, e cheguei a umas
coisinhas.
— Que coisinhas?
— Ah! concluí que vou ficar com o que tenho, arrancar o que
não presta, e crescer naquilo que ainda não tenho.
— Como assim?
— Bom, é melhor chorar com o que deve ser chorado do que rir
a toa e fazer graça para parecer alegre; é melhor ter fome do reino de Deus do
que ciscar na terra da insatisfação.
— Explica, meu velho.
— Por exemplo: quero ter humildade para saber o meu lugar no
reino de Deus, mansidão para não querer controlar as coisas, misericórdia para
entender os problemas dos outros, limpeza de coração para ver o que Deus está
fazendo, e paz do nosso Senhor para viver com todos.
— Mas será que não vão dizer que você não é bom crente?
Wadislau Martins Gomes
2 comentários:
Muito bom! Parabens!!
Excelente a resposta e convicção de "seu Garcindo", "crescer naquilo que ainda não tenho".
Em poucas palavras, essa simplicidade com profundeza no coração e percepção do reino de Deus que desejo ter.
Clodoaldo
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