Nasci em família cristã e vim ao Brasil aos quatro meses de idade com
meus pais. Sempre nos foi transmitida a idéia de que éramos “missionários”
porque saíramos de nossa terra e viéramos a outro país realizar a obra de
evangelização e plantação de igrejas. Meus pais labutaram dezessete anos no
Brasil, ligados ao Board of Foreign Missions da Southern Presbyterian Church e
afiliados ao West Brazil Mission. Nosso primeiro lar foi em Patrocínio, MG ,
onde fui batizada ainda pequenina. Meus pais aprenderam a língua portuguesa e
eu aprendi a falar na língua deles bem como na língua dos “objetos do seu esforço”.
Após “dominar” a língua, meu pai foi designado para o pastoreio em Monte
Carmelo, Minas, e minha mãe atuava como educadora cristã, enfermeira, parteira,
organista ou acordeonista, dependendo de o culto ser dentro da igreja ou algum
outro lugar, para onde o acordeão era facilmente transportado. Eu acompanhava
meus pais para todo lado e sentia-me privilegiada por ser missionária com eles.
Com quatro anos de idade, sob forte convicção de pecado, percebi que nunca
aceitara pessoalmente a Jesus como meu Salvador, e orei com minha mãe para
receber Jesus no coração. Meus pais liam
a Bíblia comigo e, depois que aprendi a ler, orgulhava-me de fazê-lo sozinha,
orar e cantar hinos e corinhos – e evangelizar outras crianças vizinhas. Um
hino que aprendi cedo foi “Mesmo um menino pode crer na salvação de Deus” (Cânticos
de Salvação para Crianças, APEC) e também cria fielmente na letra de outro:
“Posso se um missionariozinho ao falar de Cristo ao meu companheirinho; posso
trabalhar em minha terra; manda-me pois Senhor”.
A ideia que eu imitava e
compartilhava com meus pais e com outros crentes – tanto missionários quanto
“objetos”[1]
da missão, era que seríamos missionários por haver saído de uma terra de origem
para pregar a outro povo – e assim, éramos um pouco mais importantes (e mais dedicados!)
no reino de Deus do que os crentes comuns. Isso trazia também mais
responsabilidades: eu tinha de ter um melhor comportamento que o de meus
amiguinhos, ser exemplo de crente e sempre agir como “filha do Rei” (ou filha
de missionário).
Depois de um ano de férias nos Estados Unidos, onde de certa forma éramos
“celebridades” – pelo menos entre as igrejas que participavam de nosso sustento
– voltamos ao Brasil, desta vez para Goiânia. Ao pastorado papai acrescentou a
atividade de programa de rádio, e minha mãe nos ensaiava (minha irmã e eu) para
cantarmos duetos na rádio – críamos piamente que nós mesmas estávamos
evangelizando através da música. Jamais admitimos (a nós ou aos outros) nosso
orgulho exibicionista (eu sou filha do Rei… herdeira com Cristo, sim, sou filha
do Rei, uai! É bom demais da conta!) porque estávamos proclamando o evangelho.
Aos onze anos viajei com uma família da missão Novas Tribos para o norte
de Goiás (hoje Tocantins) onde atuavam como missionários
entre os índios. Fiquei empolgada com seu trabalho. Um ano depois, em uma
conferência de um avivalista em Goiânia, fui à frente atendendo o chamado de Jesus,
decidindo que serviria ao Senhor onde quer que ele mandasse. Na época, estava
fascinada pelo evangelismo de judeus e até me correspondi com diversos
missionários (adultos) para aprender mais sobre esse trabalho. Missões, até então, era um trabalho que dependia
da nossa decisão e realização!
Meus pais deixaram a missão presbiteriana e se tornaram batistas
independentes, e nessa ocasião eu os acompanhei “às águas”. A igreja a que nos
filiamos era avivada e zelosamente legalista. Passei a ensinar na escola
dominical para uma classe de meninas de oito anos. Sentia-me realizada como missionária mirim que se achava grande
coisa para Jesus.
Muitas pessoas foram influenciadas por meus pais. Em 1984 – apesar de
ele haver se afastado do ministério desde 1965 e abandonado minha mãe, bem como
suas filhas, desde o meu casamento em dezembro de 1966 – diversos “frutos de seu antigo ministério”
agora atuantes líderes nas igrejas pelo Brasil afora, pela graça de Deus estavam
presentes no sepultamento do papai.
Juntamente com meu marido e outros nove alunos, fui da primeira turma do
Instituto Bíblico Palavra da Vida, preparando-me para missões. Continuava com a
visão missionária de “ir” – sair de uma terra para um lugar distante a fim de
compartilhar as boas novas – como fez Carrey, o primeiro missionário da era
moderna.
Ali, começamos a aprender que o imperativo de Mateus 28.29-30 não era um
de ir, mas de fazer discípulos onde quer que estivéssemos indo. Respirávamos
missões desde o acordar até o dormir – e muitas vezes sonhamos com algum lugar
distante onde serviríamos com abnegação ao Senhor da Seara.
Quando nos casamos, tínhamos em mente que seria em algum canto obscuro
entre índios, mas começamos a nos empolgar também pelo evangelismo de judeus e,
em janeiro de 1969, logo após a ordenação do Wadislau, fomos para Belo Horizonte
como os primeiros missionários da Missão Brasileira Messiânica. Nosso filho Davi,
“pequeno missionário” (com um ano e três meses!) nos acompanhava nas idas para
“levantamento de fundos” e pregação da palavra.
Os anos foram passando, e alguns conceitos foram mudando. O evangelho de
Jesus Cristo conforme ensinado no Antigo e no Novo Testamento, não muda – mas
nosso conceito de missões foi se expandindo e sendo burilado pelo Espírito Santo.
Hoje entendemos que não somos nós que “fazemos missões” – a missão é de Deus –
parte de Deus e não de nossas obras, e é realizada por ele. Missão é um termo
de propósito ou alvo em longo prazo que será atingido mediante objetivos
próximos e ações planejadas. Dentro dessa missão tão ampla, há espaço para
missões subordinadas, no sentido de tarefas específicas designadas por uma
pessoa ou grupo de pessoas, que serão realizadas como passos em direção à
missão mais ampla. Mas temos uma abordagem missiológica de toda a Bíblia,
porque a missão é de Deus e ele fala através de sua Palavra, ensinando “o propósito
pelo qual a Bíblia existe, o Deus que a Bíblia nos entrega, o povo cuja
identidade e missão a Bíblia nos convida a compartilhar, a história que a Bíblia
conta sobre Deus e sobre esse povo, bem como sobre o mundo inteiro e seu
futuro, que abrange passado, presente e futuro, a vida, o universo e todas as
coisas…”[2]
Estamos aprendendo missões na palavra de Deus. Lemos a Bíblia de forma missional, como matriz hermenêutica para
nosso entendimento da Escritura e do mundo. Enquanto cumprimos a missão de Deus
no mundo de fazer convergir nele (Jesus Cristo, Deus encarnado – Ef 1.10) todas
as coisas, para a sua glória, ele faz em nós tanto o querer quanto o realizar.[3]
Não tenho a profissão de missionária; sou professora de inglês ainda que
hoje não a exerça; sou tradutora de livros, comunicadora e escritora. Minha
função primária é de ajudadora de meu marido e apoio para filhos, noras, netos
e quem porventura chegar a nossa casa.
Tenho funções polivalentes, como um canivete suíço, mutáveis e sempre em
transição, com a meta de amar, obedecer e servir a Deus em casa ou por onde
passar até os confins da terra. Sou enviada a cumprir a missão de Deus, pois
desejo proclamar o evangelho da missão de Deus em palavra e vida. Sou uma
missionária fracassada, pois não tenho grandes feitos em meu currículo – mas
sirvo a um grande Deus de visão missional
– e continuarei nisso até que ele me leve à sua presença total nas bodas do Cordeiro.
Aqui na terra, aprendo a cada dia com obreiros que servem às crianças,
aos atletas, aos idosos, aos jovens, aos hospitalizados, aos indígenas, aos
universitários, aos judeus, aos pescadores e a toda espécie de pecadores –
aprendendo cada dia a conhecer melhor a Jesus, o poder da sua ressurreição e a
comunhão de seus sofrimentos (Fp 3.10). Não existe vida melhor que essa! Não
existe outra missão senão essa – glorificar a Deus e gozá-lo para sempre[4].
Elizabeth Gomes
[1] Essa idéia de “objeto” ou “alvo” estava sempre
implícita nessa “bulls’-eye theology” (centro do alvo) adotada por missionários,
obreiros e “crentes comuns.”
[2] Wright, Christopher, The Mission of
God, Downers Grove : InterVarsity, 2012, p. 23
[3] Ibid, p.32
[4] Primeira resposta do Catecismo de Westminster
2 comentários:
Ainda que a expressão "missionária fracassada" venha desse senso de humildade que tão bem caracteriza a personalidade de D. Beth, tenho que discordar, pois seus relacionamentos, as impressões deixadas nas vidas de outros como eu, sua voz lindíssima louvando ao Senhor e inspirando vidas, seu ensino balanceado e amoroso, sua "exemplary motherhood", sua colaboração imprescindível no ministério de seu marido e seu próprio ministério como autora e tradutora de livros, mostra inquestionavelmente que se há alguém que não é fracassada como missionária, é esta maravilhosa Mulher e Esposa Cristã, D. Elisabeth Gomes. Tenho dito. Love, Valdir.
Irmã Mrs Elizabeth,
Quão grande e maravilhosa missão nosso Deus preparou para ti! que história linda, com propósito do Senhor que tudo já havia tudo planejado!
Só quem deixa sua pátria sabe o que é viver longe de casa! mas compreendemos que não somos daqui e sim cidadãos dos céus, graças a Jesus. E por isso Deus permitiu e lhe sustentou até aqui, para muitos frutos que ainda que virão deste sonho gerado nos corações de seus pais por parte de Cristo.
Quero dize-la que tão maravilhosamente tenho sido edificado pelo ministério que nosso Deus confiou em suas mãos e do amado Pr. Wadislau que mesmo sem te-los conhecidos pessoalmente, tenho aprendido a amá-los, e rogo a Deus para que isto aconteça no tempo e sob a vontade Dele.
Aqui longe de vocês tenho acompanhado ministrações do Pr. "Lau" e sido edificado por vocês e por toda sua família.
Agradeço a Deus por vocês, e pela inspiração que tenho recebido por parte de Deus através de vocês!
Que produza muitos frutos vossa semente, Deus continue abençoando missionários americanos, que muitos teólogos aqui do Brasil possam reconhecer e aprender com as missões Americanas e respeitar estes servos que deram suas vidas e famílias para abençoar nos ao invés de critica-los.
Clodoaldo Falsetti
Bauru/SP
mr_falsetti@yahoo.co.uk
"Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo" Filipenses 1:6
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