“Chegou a cachoeira”, diz um.
O outro gritou: “É a queda!” “É cascata”, comentou o gaiato, falando de lado. O
político condenado, circunspecto como vela a barlavento, declarou: “Vou ao
supremo”. Alguns, mais sagazes, perguntaram: “O que é o supremo?” E perguntam com razão. É que nesta terra macunaíma, tudo vira tudo e nada muda.
Quer dizer, há aparentes mudanças como as de um rio, com revoluções, enchentes
e secas, mas sempre no mesmo leito. Mudam o nome de coisas, de políticos, de
partidos, de orientação da mídia e de movimentos dos tempos – mas permanece o
quadro do cavaleiro emplumado, espada desembainhada, na moldura dourada:
“Independência ou morte”. Nem o grito foi original – coisa da humanidade vinda
de outros milênios de luta pelo poder. Nessa toada, passam as águas ipirangas, as canoas viram, os náufragos
se desesperam e as margens plácidas do traço de água ouvem os passantes que prosseguem
sem entender o grito heróico, entoando: “A canoa viro por deixá-la virar...”
A cena é lugar comum em uma
terra em que reinóis à cata de ouro distraiam os românticos otimistas com a
lengalenga de que “em se plantando tudo dá”. Enquanto o casario e a mesa punham
ares de trabalho no solo, o subsolo era minado e os rios, poluídos. Não tenha
dúvida – nada é incidental quando se trata de luta pelo poder.
Onde a razão suprema? Onde o
problema recorrente? A razão está em que não se constrói uma nação livre sobre
uma base de liberdade à parte de um compromisso. O problema está em que não se
conquista essa liberdade “no grito”. Nossa história se resumiu a “canetadas”,
da Lei Áurea até os golpes de 64 e de 02. A primeira, promulgada em favor dos
senhores de escravos – pondo na rua os que não cresceriam para servir, depois,
os que não prestariam como força de trabalho, e, então, todos os que gerariam
encargos sociais. A segunda, as tomadas do poder na força bruta aos gritos de
diretas já, mas sem direção moral. Com tudo o que ocorreu entre essas pontas, jamais
ficamos sem escravos nem senhores de escravos e jamais vimos imperar a
honestidade. É claro que aqui e ali surgem homens de bem, mas tudo o que
conseguem é apanhar uns magros bodes expiatórios que recorrem à supremacia da
lei.
Supremacia do quê? É isso
mesmo: suprema ditadura da lei – às expensas da justiça. Claro que isso precisa
de explicação! Não está em nenhuma cartilha nacional, em nenhum foro adequado
nem na cultura do povo. Este, coitado, aceita a propina do peixe que lhe é dado
pelos senhores dos rios sem nunca aprender a pescar. “Pra quê, se o peixe nem é
deles? Está aí, é só pegar. Não é essa a lei de Gerson?” A explicação é: toda a
lei deveria ser gerada e mantida na base da justiça, e não a justiça ser
derivada da lei! Esta sempre acaba sendo a lei dos medos e dos preços!
No tempo de Dario, rei da
Pérsia, o reino foi dividido em cento e vinte seções governadas por presidentes
e sátrapas, uns sábios e justos, outros nem tanto. Daniel – hebreu cativo sob
domínio persa, homem de Deus, sábio e justo – excelia em espírito sobre os
demais, sendo cotado pelo rei para presidir sobre toda a terra. Os políticos
buscavam ocasião para cassá-lo, mas o homem tinha ficha realmente limpa. Não
deu outra. Dos cochichos nos corredores do palácio aos toma lá, dá cás atrás das portas dos escritórios e das casas,
surgiu a ideia: usar a fé de Daniel como instrumento para acusação. Assim, munidos de bajulação e lei,
disseram:
Ó
rei Dario, vive eternamente! Todos os presidentes do reino, os prefeitos e
sátrapas, conselheiros e governadores concordaram em que o rei estabeleça um
decreto e faça firme o interdito que todo homem que, por espaço de trinta dias,
fizer petição a qualquer deus ou a qualquer homem e não a ti, ó rei, seja
lançado na cova dos leões. Agora, pois, ó rei, sanciona o interdito e assina a
escritura, para que não seja mudada, segundo a lei dos medos e dos persas, que
se não pode revogar (Daniel 6.6-8).
Decreto assinado, foi só plantar
escuta. Pegaram o contraventor, vejam só, orando!
O rei, a contragosto, obrigado a supremacia da lei, condenou Daniel à cova dos
leões: O teu Deus, a quem tu
continuamente serves, que ele te livre. Daniel, que não se fiava na lei,
mas na justiça daquele que a dispensa a lei com graça, recorreu ao único
Supremo. Três dias depois, o rei encontrou vivo ao amigo fiel: O meu Deus enviou o seu anjo e fechou a boca
aos leões, para que não me fizessem dano, porque foi achada em mim inocência
diante dele; também contra ti, ó rei, não cometi delito algum. Se era
assim, por que não livrou ao amigo da condenação. Ah! A lei dos medos e dos
persas não dava lugar à justiça! Mais uma vez, prevaleceu a lei sobre a
justiça.
É louvável que o nosso
Supremo tenha agido. Lei para eles! Mas, onde a justiça que alcança a todos?
Onde os demais? Que camas acomodam, que panos, que lençóis encobrem os grandes
e só deixam à mostra os pés dos pequenos? Os que sofremos torturas no golpe de
64 sabemos como é fácil entregar até o amigo! Será que há medos e preços, dedos
e pressões que enluvam as mãos e protegem o poder da vez? Será que nos
venderemos somente por salário família, casa própria e promessas de vida boa?
Nem que fosse manjar do rei da Pérsia ou da feiticeira do C. S. Lewis! Os
benefícios sociais são bons e necessários, mas não à custa da honra a Deus. Se
com a boa vida vêm cabrestos heterofóbicos, usurpação do poder familiar,
impostos extorsivos, monopólio da educação e desgaste do instituto da fé,
então, é chegada a hora de Deus calar as bocas dos leões. A honra às
autoridades, requerida por Deus, inclui o privilégio do zelo nos círculos de autoridade
da consciência, da família, da escola, da comunidade.
Certamente não clamo justiça
como quem reivindica direitos, que não os tenho em mim mesmo. O parecer
político do cristão não dá lugar para rebelião, mas obriga à justiça que
procede de Deus. Desejo graça que concede a verdadeira justiça. Graça que chove
sobre todos como gotas divinas, que lava e purifica, que transforma e frutifica
em todo bem.
Exatamente por crer assim, não acredito que a lei dos homens
promova essa paz. Essa, só Cristo pode conceder do alto da cruz, do alto em que
ressurreto reina soberano sobre reis e vassalos!
Ainda que haja trevas neste
mundo, elas não prevalecerão contra a luz da glória de Deus. Sempre poderemos
sair em passeata, com a cara descoberta, andando na vida comum de modo digno da
vocação, portanto cartazes de fé: Encontraram-se
a graça e a verdade, a justiça e a paz se beijaram (Salmos 85.10).
Wadislau Martins Gomes
Um comentário:
Acalentador. Confesso que tenho andado deseperançosa. Os promotores da lei agem menos como juízes e mais como celebridades.
Obrigada, por não nos deixar esquecer a quem pertence a justiça.
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