A
graça de Deus é que permite conhecer e discernir as dimensões de unicidade e
multiplicidade em tudo o que existe. O que eu quero dizer? Isto mesmo que foi
dito: o que permite que conheçamos a Deus e as coisas que ele criou, incluindo
a nós mesmos, é sua graça. Mas o que é graça? Esta é uma palavra de contato,
isto é, que a gente usa sem saber definir o significado. Um dos sentidos do
termo graça é muito conhecido e usado: “favor imerecido”. Entretanto, este
sentido é descritivo de uma propriedade da graça, não do seu significado.
Deixe-me
ilustrar. Era o fim da década dos cinquentas, quando os jovens vestiam calças
“rancheiras” (o jeans da época), as moças de sandálias e os moços de botas com
salto “carapeta” (do formato de peão). Minha irmã, já falecida, estava naquela
idade de ser menina moça, muito graciosa. Um dia, aproximou dela um jovem bem
tratado, cabelo volteado na testa, que disse: “Posso saber sua graça”. Ela
respondeu: “Eu não fiz graça nenhuma!” Tão logo percebeu a situação incômoda,
saiu correndo, sem graça. Parece piada, mas se aplica bem à definição do termo.
Graça é identidade, beleza, paz (interação harmônica) e alegria. Graça é a
manifestação da identidade de Deus, de sua beleza, de sua paz e de sua alegria.
Por
que “favor imerecido”? Vai outra ilustração. Pequeno ainda, na cidade de Jahu,
SP, quando a noite caia, eu me punha a olhar as estrelas. O céu parecia uma
daquelas panelas pretas da fuligem do fogão a carvão que havia lá em casa. Às
vezes, as panelas começavam a chiar no fogo, e minha mãe as levantava contra a
luz para ver se estavam furadas. E eu imaginava se as estrelas não seriam furos
na negridão do céu, deixando passar réstias fulgentes de uma luz perene. Assim
é que, à visão de cada traço de luz do amor de Deus que penetra as trevas do
pecado deste mundo, o crente diz: “Eu não mereço!”
Graça
é isso: o movimento de Deus na direção do homem a fim de transmitir sua própria
natureza. É sobre esse movimento que Pedro escreveu:
Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas
todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo
daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm
sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos
torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das
paixões que há no mundo (2Pd 1.3-4).
Como
opera a graça de Deus? Certamente mediante a fé. A Palavra de Deus diz que a fé
é uma certeza que pressupõe esperança, não como quem “torce” num jogo ou numa
eleição, mas a certeza de algo que se conhece, mas que ainda não se vê (como
esperar se não for conhecido? – ver Hebreus 11.1-6). No mesmo lugar, a
Escritura diz:
Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela
palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não
aparecem. De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário
que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador
dos que o buscam.
Galardoador,
aqui, não tem o sentido de recompensador de obras, mas da fé. Como diz Calvino (Comentário aos Hebreus), a intenção do autor de Hebreus é elevar nossa
consciência para ver que nossa aproximação de Deus não será vã, pois ele mesmo
nos criou para tal finalidade e propósito.
Wadislau Martins Gomes
(Extraído de Todo mundo pensa – você também; Brasília:
Monergismo, 2013, pp 52-54.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário