O coração do sábio discernirá o tempo e
o modo (Eclesiastes 8.5).
O passado não é assim tão remoto
Um pastor
perguntou à classe de escola dominical há quanto tempo o mundo existia. Um
diácono respondeu categórico: “502 anos — comemoramos os quinhentos anos já
fazem dois anos”. Um candidato ao
ministério, referindo-se a um pastor brasileiro, professor num seminário,
comentou: “Ele é fera mesmo. Foi aluno do próprio Calvino” – pensando
que seu professor tivesse estudado poimênica aos pés do grande reformador,
quando ele se referia a um professor e clínico atual.
Se você tem menos
de trinta anos, não terá participado do protesto Diretas Já. Se está na
casa dos vinte, será que chegou a marchar pelo impeachment do Collor?
Você se lembra onde estava quando Kennedy foi assassinado? Se tiver mais de quarenta anos, talvez tenha
imagens indeléveis em preto no branco e com matizes de cinza, da realidade do
desmoronamento do pretenso Camelot moderno — o choque da vulnerabilidade
dos mais poderosos do mundo. Outra imagem inesquecível transmitida pela
televisão foi do salto para a humanidade que foi o primeiro passo do homem na
lua. Lembro-me daquele dia: um senhor na padaria onde fomos comprar leite
afirmou categórico: “Isso é tudo propaganda americana. Montagem. Ninguém jamais
irá à lua”.
Você se lembra
dos dias de agonia com a doença e morte de Tancredo Neves, de quem pensávamos
ser o primeiro presidente não militar desde a revolução de 64?
Meu marido
contava a jovens que, antes de sua conversão, jovem, fora preso na revolução
militarista e, da cadeia, ouviu um conhecido pastor declarar que “agora acabou
a luta contra o comunismo porque eles estão todos presos onde deviam estar”. Os
jovens o olharam como se fosse um ocorrido de outro século — e era de vinte
anos antes no mesmo século vinte.
Ele mesmo conta
de conversas com seu pai que descrevia a ida a São Paulo para participar da Revolução
Constitucionalista de 34. Parecia-lhe tão distante no tempo... hoje conversamos
com jovens sobre momentos históricos de que participamos e eles nos olham como
se fôssemos de outro planeta.
Meu avô
contou-me que o seu pai, quando jovem, apanhou do pai dele quando
afirmou que um tal de Alexander Graham Bell havia inventado um aparelho com o
qual se podia falar com pessoas distantes a mais de um quilômetro. “Isso é
mentira, porque só Deus fala à distância”.
Lembranças pessoais
Recordo-me bem de
um dia, em agosto de 1954, quando meus pais, eu aos seis anos de idade (está
vendo — agora vocês sabem!) e minha irmã de três, chegamos ao Rio de Janeiro depois
de um período de férias nos Estados Unidos. O navio atracara no Rio para os
turistas passarem o dia antes de prosseguirem para Santos, o destino final.
Minha irmãzinha se perdeu no centro de Copacabana e o taxista não queria voltar
com meu pai para procurá-la porque o trânsito estava desgovernado: era o dia em
que Presidente Vargas suicidou.
As manchetes
sobre gente morta a tiros ao tentar atravessar o muro de Berlim que rasgava a
cidade em Oriente e Ocidente ficaram gravadas em minha mente impressionável de
doze anos. Agora já nos esquecemos dos poucos anos que passaram desde que o
muro da vergonha foi despedaçado e pedaços dele vendidos como lembrança para
turistas na Alemanha do final do século passado.
Eu tinha treze
anos, e era só uma formiguinha entre as milhares de pessoas, na praça dos três
poderes, que assistiam Juscelino Kubitschek inaugurar Brasília, a capital da
esperança. Na semana anterior, minha irmã tinha acompanhado papai em visita ao
presidente. Guardamos até hoje a foto em que a encantadora menina foi beijada
pela primeira dama (nossa rainha),
Dona Sara Kubitschek.
Vivi um ano nos
Estados Unidos quando se faziam treinamentos, na pacata cidade em que vivíamos,
para nos conduzir a abrigos antibombas em caso de ataque nuclear. Não se sabia,
nunca, até depois, se era apenas um ensaio ou o acontecimento de fato. O pavor que se tinha do domínio
comunista no mundo era disseminado pelo “mundo livre”. Hoje, o mundo livre viu
ruir o poder da União Soviética, mas vive com pavor do terrorismo de grupos
extremistas muçulmanos. Quem conhece gente que foi tragada pelas torres do World
Trade Center em onze de setembro sabe que não existe lugar seguro no mundo.
Lembra-se de onde você estava quando ouviu a notícia?
Alienados no presente
Hoje, a maioria das pessoas não tem noção de história — nem as da
igreja nem as do mundo. Igrejas chamadas históricas oscilam com os tempos.
Igrejas pentecostais cuja história tem menos de cem anos estão mais tradicionais.
Igrejas da terceira onda têm seus “apóstolos” que, em vez de fundamentar a
igreja invisível de Cristo, gastam 70 % de seu tempo na televisão pedindo
dinheiro e descrevendo as bênçãos da prosperidade. Abundam as afirmativas
amalucadas de desconhecedores de história.
Ouvi alguém afirmar
que Calvino era um déspota assassino, sem saber que o reformador sequer fazia
parte do conselho da cidade nem a razão do seu apoio. Essa pessoa se agarrava a
chavões tendenciosos e ignorava por completo o reavivamento que seguiu a
Reforma Protestante, fazendo com que, em um ano, a igreja de Genebra abrisse
mais de cem novas igrejas e no segundo ano, mais de mil — junto a uma
transformação social que incluía o abrigo e sustento pessoal de centenas de
pessoas desprovidas de seus bens e familiares (essa era a estirpe dos
reformadores!). Voltaram à França com uma visão holística do evangelho perto da
qual nosso evangelicalismo xôxo e
antropocêntrico empalidece.
“Os que não
conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”, disse o pensador
George Santayana.[1]
Em vez da visão
de remir o tempo conforme Efésios 5.16, o tempo presente é visto como a
hora para se aproveitar ao máximo as oportunidades — para si mesmo! Queremos
mais tempo de lazer, tempo para nós mesmos, tempo para investir na pessoa mais
importante de minha vida — eu! – esquecidos do que disse Paulo sobre gastar-se
e deixar-se gastar “em prol das vossas almas, ainda que mais vos amando seja
eu menos amado” (2Co 12.15).
Por meio dos
livros e de comentários da televisão, somos comprovadamente crentes
quando temos sucesso nos negócios, no amor, na vida. Um Jó sentado no pó,
destituído de bens, família e saúde, ou um Moisés por quarenta anos pastoreando
rebanhos do sogro no deserto antes de gastar mais quarenta anos dando voltas
sem terra num deserto ainda mais vasto, conduzindo um povo resmungão, criando
nele uma ética de vida para a eternidade, ou um Paulo a quem “Demas me
abandonou por amar mais o presente século” — são alheios aos nossos
anseios.
Cristo afirmou que “no mundo tereis aflições”
e passou por um tribunal infame e uma morte vergonhosa, abandonado pelos que o
seguiram durante três anos de ministério — todas essas histórias “negativas”
são estranhas à visão de êxito na vida cristã, proposta pela mídia e pelos
púlpitos evangélicos.
Perdemos a visão
do tempo presente, achando que somos donos de nosso próprio tempo e podemos
gastá-lo em proveito pessoal. Perdemos a visão da atualidade em que fomos
inseridos, do tempo que se chama hoje e que amanhã, não volta.
Diz
o educador cristão Robert Pazmiño: “O cristão não escolheu o tempo para sua
jornada histórica, mas estar inserido em determinado tempo histórico requer
aprendizado do passado e viver no presente tendo em vista o futuro de Deus”. [2]
Sem as raízes do
passado, sem saber onde pisamos na atualidade, é impossível que tenhamos uma
visão acertada do futuro. Esvoaçamos como borboletas que se agitam e pousam sobre
de montes de esterco, em vez de flores, sem jamais alçar com asas como de
águias que voam sem fadiga.
A Bíblia começa
com uma declaração que engloba tempo, espaço e matéria: “No princípio
criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1) e o evangelho se resume na
entrada do Deus infinito na história da humanidade finita, dando-nos eternidade
de glória: E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de
verdade, e vimos a sua glória, glória como a do unigênito do Pai (João
1.14), na cruz e na ressurreição. A pregação do Evangelho de Paulo incluiu uma
visão do poder de Deus na história: “de um só fez toda a raça humana para
habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente
estabelecidos e os limites da sua habitação” (Atos 17. 26). Como não prestar
atenção à história de nossa fé, à história de nós mesmos, e à inserção do Deus
que fala e age dentro da história humana para nos proporcionar apoios sólidos
na terra e asas largas e fortes para vôos mais altos?!
Elizabeth
Gomes
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