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Detalhe: Her Sadness by Olof Erla Einarsdottir |
Em meados de
novembro, uma amiga postou no facebook que terminara de comprar os presentes de
natal para toda a família, e que tudo estava pronto para as festas. Confesso
que fiquei com inveja, frustrada porque o dia se aproxima e eu nem comecei as
compras. A lembrança da parábola de Jesus das dez virgens vem-me à mente com
uma forte dose de culpa – se bem que me justifico com a lembrança de que a
história das tolas sem azeite para suas lâmpadas, na verdade, se aplica ao
preparo para a vinda do Senhor e não à questão do Natal – o Senhor já veio.
Nem sabemos a
época do ano em que ele realmente nasceu, e a festa do natal como a conhecemos
é resquício da tentativa de cristianizar a festa pagã de saturnália. Apesar de eu
ter afirmado que não atenderia solicitações de jogos pela internet, algumas
pessoas me envolveram com apelos para sua “árvore de natal” e em amor às
tradições natalinas eu cedi – e me descobri num emaranhado de sugestões de
enfeites e pedidos para eu compartilhar “presentes” para as árvores de muitos
amigos queridos, cujas árvores não
estou enfeitando.
Muita gente
vê o Natal como época de maior pressão, complicação e depressão. As pressões
mais leves são de como manobrar no trânsito maluco de São Paulo, como atender
todos os pedidos feitos e suspeitos de tanta gente que espera um gesto de
carinho e apreço com os proventos do décimo terceiro que, em casos como os de
casa, não existem. As pressões para comprar, dar presentes, estar presente, e compartilhar
“o espírito natalino” em nosso lar, com os colegas de trabalho e os parentes,
com amigos secretos e caixinhas obrigatórias de todo lado. Na igreja, com os
missionários e pastores e as instituições de caridade que apoiamos, de “ter de
fazer” aquilo que não conseguimos o ano inteiro. Essas pressões aumentam à
medida que se aproxima o grande dia. Antigamente só começava a campanha de
compras para o natal depois do dia de ação de graças. Hoje poucos no Brasil se
lembram dessa ação de graças – só da atividade doida e multiplicada ação da época
de mais formaturas, casamentos, concertos, confraternizações e celebrações de
toda espécie – bem como o aumento de sofrimentos ligados a acidentes, doenças e
tragédias no macrocosmo e em nosso microcosmo particular.
As
complicações são muitas. Quando descobrimos que o mundo não é perfeito e que as
coisas não eram para ser assim, a depressão assola a todos.
Em dezembro
de 1979, saímos depois do culto de natal em nossa igreja rumo à casa dos pais
do Lau, em Araras, para celebrar com eles o dia vinte e cinco de dezembro. O
barulho alegre das crianças cantando no carro, entre provadinhas dos cookies que eu assara e o aroma da
paleta de cordeiro que levava, e a presença do seminarista com nossa família,
sabíamos que este seria um natal perfeito.
Estavam em flor as hortências que ladeavam a entrada do carro na casa da vovó –
como no dia do nosso casamento treze anos antes. A casa estava calada e a Da.
Eulina e o Sr.Wadislau não nos esperavam na varanda para dar as boas vindas.
Depois de muito procurar, achamos a empregada que, quando perguntamos cadê todo mundo, disse apenas: hospital. Três quarteirões acima, no
Hospital São Luiz, Da. Eulina estava ao lado do leito da firmeza da família,
Sr. Wadislau: tombado, mudo e agonizante. No dia seguinte, aniversário seu e do
irmão gêmeo Venâncio, tínhamos cantado “Que a beleza de Cristo se veja em mim”
– e ele foi ver essa beleza face a face, no céu. O dia do seu natal foi de nosso amargo-doce luto – amargo pela dor da perda,
doce pela lembrança do tesouro eterno que nossos lábios jamais cessariam de
cantar. Havia muito tempo o natal para nós não era de ho-ho-ho do papai noel –
agora seria sempre de “ai que dor! seu
doutor!” ao lembrar a falta que ele fazia.
Cinco anos
mais tarde, foi a vez de ver o homem animado e generoso que era meu pai definhar e morrer para esta
vida. Permitiram que ele saísse do hospital para passar o natal em casa conosco,
e a celebração do natal começou com um café da manhã a que veio um casal de antigos
colegas do tempo em que meus pais ainda eram missionários e estavam juntos. A presença era preciosa, e os presentes apenas simbólicos. Papai
voltou para o Hospital de Base no dia vinte e seis e durou até dia dois de
janeiro – mas seu coração já estava restaurado na presença do Senhor desde antes
daquele natal.
Muita gente
tem lembranças doloridas, como as nossas, do tempo de natal. As nossas têm a
tranquilidade de um encerramento pacífico – pior são as lembranças que alguns
irmãos de carne e sangue têm de perdas irreparáveis, agressões, violências e em
que não há esperança de vida eterna. Tem gente que geme “feliz natal” para não
gritar Deus, por quê?! Sejam essas
perdas devido a inundações locais ou tsunamis de repercussões internacionais,
sejam elas de perda de emprego ou ministério em época de evangelho de
prosperidade e êxito de tanta gente que não merecia tanto – essas perdas em
épocas festivas só aumentam o abismo entre os que têm e são, e os que queriam
ter ou ser alguma coisa e nem sabem o que pedir primeiro.
Voltando ao
evangelho, descobrimos que o Cordeiro de Deus (João 1.29) se fez carne e
habitou entre nós, cheio de graça e de verdade (João 1.14) – posto em humilde
estábulo. Lugar propício para abrigar um cordeirinho recém nascido (Lc 2.7,12).
Sua mãe na terra não tinha enxoval caprichado: ela o envolveu em panos, e os
seus primeiros visitantes eram rudes pastores atônitos por terem recebido inusitada
mensagem angélica e incumbência de transmitir a mensagem evangélica a todos
quantos encontrassem (Lc 2.8-20).
Um tempo mais
tarde, homens sábios, vindos de longe, dariam ao infante, presentes dignos de
Rei: ouro, incenso e mirra. (Mt 2.11). Com certeza José e Maria usariam os
recursos dessa dádiva para financiar a fuga ainda mais repentina para o Egito
(Mt 2.14-18). O nascimento do Cordeiro significava também a morte de muitas
criancinhas, assassinadas pela fúria invejosa de Herodes que desejava o título
de único rei em Israel.
Hoje, muitos
de meus amigos me desejam feliz natal enquanto encaram corações partidos,
câncer e outras doenças devastadoras. Este natal contrasta com as musiquinhas de sinos tocando e
anunciando a chegada (hoje em dia é de helicóptero!) de gigantescos papais
noéis.
O nascimento
de Jesus é, sobretudo, tempo de contradições. No dia da sua dedicação do primogenito, que de
Deus é Filho unigênito, o velho profeta Simeão avisou a mãe que uma espada
traspassaria seu próprio coração (Lc 2.21-35). Yehoshua – Salvador – será
grande redentor, filho do Altíssimo, Luz do mundo e Pão da Vida – mas não teria
onde reclinar a cabeça. O dom da vida veio envolto em panos de morte, e
diferente dos muitos aromas que associamos ao natal hodierno, a mirra que
recebera entre os presentes de nascimento seria semelhante ao nardo que seria
usado sobre seu corpo quando ungido em Betânia para morrer (Jo 12.3,7) e em
Jerusalém para inaugurar seu novo túmulo (Jo 19.39-40).
Natal fala da glória de Deus na
face de Cristo e em vasos de barro!
Uma das grandes contradições do natal é que nossa fé
não se firma na prosperidade ou em abundantes bênçãos sobre a terra – mas em
meio a lutas, carências, pendências e até mesmo incoerências. Paulo entendeu
bem isso ao escrever à igreja de Corinto sobre a morte e vida severina (ou paulina) de um Deus de dura e mui vera
misericórdia. Aos meus amados, amigos e até aos que pouco conheço, desejo que
essa luz de natal ilumine esplendorosamente nossa vida, quer seja ela de
saudades de natais alegres do passado, quer de alegrias borbulhantes no presente,
quer esguias mas firmes esperanças futuras:
Porque
Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em
nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de
Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do
poder seja de Deus e não de nós. Em tudo somos atribulados, porém não
angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não
desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer
de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo. Porque
nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que
também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que, em nós,
opera a morte, mas, em vós, a vida. Tendo, porém, o mesmo espírito da fé, como
está escrito: Eu cri; por isso, é que falei. Também nós cremos; por isso,
também falamos, sabendo que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos
ressuscitará com Jesus e nos apresentará convosco. Porque todas as coisas
existem por amor de vós, para que a graça, multiplicando-se, torne abundantes
as ações de graças por meio de muitos, para
glória de Deus. Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso
homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em
dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de
glória, acima de toda comparação, não
atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se
vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. (2 Co 4.6-18)
Elizabeth Gomes
2 comentários:
Beth, mais uma vez um lindo e rico texto! Obrigada.
Oi Beth, me lembro da felicidade do Presb. Wadislau quando se preparava pra receber os amados filhos (nora, genros)e netos para as comemorações do Natal e aniversário e, naquele dia ele tentou levantar-se mais cedo do que o normal para cuidar com carinho de todos os detalhes, mas resolveu atender ao chamado do seu SENHOR... são marcas profundas nas nossas vidas... sei bem o que é passar por isso... lembranças amargas que são cobertas pela alegria da SALVAÇÃO e ver a herança que seu pai e sogro deixaram para os herdeiros...
Deus abençoe a amada família!!!
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