quarta-feira, dezembro 11, 2013

PESO DO NATAL


Detalhe: Her Sadness by Olof Erla Einarsdottir

Em meados de novembro, uma amiga postou no facebook que terminara de comprar os presentes de natal para toda a família, e que tudo estava pronto para as festas. Confesso que fiquei com inveja, frustrada porque o dia se aproxima e eu nem comecei as compras. A lembrança da parábola de Jesus das dez virgens vem-me à mente com uma forte dose de culpa – se bem que me justifico com a lembrança de que a história das tolas sem azeite para suas lâmpadas, na verdade, se aplica ao preparo para a vinda do Senhor e não à questão do Natal – o Senhor já veio.

Nem sabemos a época do ano em que ele realmente nasceu, e a festa do natal como a conhecemos é resquício da tentativa de cristianizar a festa pagã de saturnália. Apesar de eu ter afirmado que não atenderia solicitações de jogos pela internet, algumas pessoas me envolveram com apelos para sua “árvore de natal” e em amor às tradições natalinas eu cedi – e me descobri num emaranhado de sugestões de enfeites e pedidos para eu compartilhar “presentes” para as árvores de muitos amigos queridos, cujas árvores não estou enfeitando.

Muita gente vê o Natal como época de maior pressão, complicação e depressão. As pressões mais leves são de como manobrar no trânsito maluco de São Paulo, como atender todos os pedidos feitos e suspeitos de tanta gente que espera um gesto de carinho e apreço com os proventos do décimo terceiro que, em casos como os de casa, não existem. As pressões para comprar, dar presentes, estar presente, e compartilhar “o espírito natalino” em nosso lar, com os colegas de trabalho e os parentes, com amigos secretos e caixinhas obrigatórias de todo lado. Na igreja, com os missionários e pastores e as instituições de caridade que apoiamos, de “ter de fazer” aquilo que não conseguimos o ano inteiro. Essas pressões aumentam à medida que se aproxima o grande dia. Antigamente só começava a campanha de compras para o natal depois do dia de ação de graças. Hoje poucos no Brasil se lembram dessa ação de graças – só da atividade doida e multiplicada ação da época de mais formaturas, casamentos, concertos, confraternizações e celebrações de toda espécie – bem como o aumento de sofrimentos ligados a acidentes, doenças e tragédias no macrocosmo e em nosso microcosmo particular.

As complicações são muitas. Quando descobrimos que o mundo não é perfeito e que as coisas não eram para ser assim, a depressão assola a todos.

Em dezembro de 1979, saímos depois do culto de natal em nossa igreja rumo à casa dos pais do Lau, em Araras, para celebrar com eles o dia vinte e cinco de dezembro. O barulho alegre das crianças cantando no carro, entre provadinhas dos cookies que eu assara e o aroma da paleta de cordeiro que levava, e a presença do seminarista com nossa família, sabíamos que este seria um natal perfeito. Estavam em flor as hortências que ladeavam a entrada do carro na casa da vovó – como no dia do nosso casamento treze anos antes. A casa estava calada e a Da. Eulina e o Sr.Wadislau não nos esperavam na varanda para dar as boas vindas. Depois de muito procurar, achamos a empregada que, quando perguntamos cadê todo mundo, disse apenas: hospital. Três quarteirões acima, no Hospital São Luiz, Da. Eulina estava ao lado do leito da firmeza da família, Sr. Wadislau: tombado, mudo e agonizante. No dia seguinte, aniversário seu e do irmão gêmeo Venâncio, tínhamos cantado “Que a beleza de Cristo se veja em mim” – e ele foi ver essa beleza face a face, no céu. O dia do seu natal foi de nosso amargo-doce luto – amargo pela dor da perda, doce pela lembrança do tesouro eterno que nossos lábios jamais cessariam de cantar. Havia muito tempo o natal para nós não era de ho-ho-ho do papai noel – agora seria sempre de “ai que dor! seu doutor!” ao lembrar a falta que ele fazia.

Cinco anos mais tarde, foi a vez de ver o homem animado e generoso que era meu pai definhar e morrer para esta vida. Permitiram que ele saísse do hospital para passar o natal em casa conosco, e a celebração do natal começou com um café da manhã a que veio um casal de antigos colegas do tempo em que meus pais ainda eram missionários e estavam juntos. A presença era preciosa, e os presentes apenas simbólicos. Papai voltou para o Hospital de Base no dia vinte e seis e durou até dia dois de janeiro – mas seu coração já estava restaurado na presença do Senhor desde antes daquele natal.

Muita gente tem lembranças doloridas, como as nossas, do tempo de natal. As nossas têm a tranquilidade de um encerramento pacífico – pior são as lembranças que alguns irmãos de carne e sangue têm de perdas irreparáveis, agressões, violências e em que não há esperança de vida eterna. Tem gente que geme “feliz natal” para não gritar Deus, por quê?! Sejam essas perdas devido a inundações locais ou tsunamis de repercussões internacionais, sejam elas de perda de emprego ou ministério em época de evangelho de prosperidade e êxito de tanta gente que não merecia tanto – essas perdas em épocas festivas só aumentam o abismo entre os que têm e são, e os que queriam ter ou ser alguma coisa e nem sabem o que pedir primeiro.

Voltando ao evangelho, descobrimos que o Cordeiro de Deus (João 1.29) se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade (João 1.14) – posto em humilde estábulo. Lugar propício para abrigar um cordeirinho recém nascido (Lc 2.7,12). Sua mãe na terra não tinha enxoval caprichado: ela o envolveu em panos, e os seus primeiros visitantes eram rudes pastores atônitos por terem recebido inusitada mensagem angélica e incumbência de transmitir a mensagem evangélica a todos quantos encontrassem (Lc 2.8-20).

Um tempo mais tarde, homens sábios, vindos de longe, dariam ao infante, presentes dignos de Rei: ouro, incenso e mirra. (Mt 2.11). Com certeza José e Maria usariam os recursos dessa dádiva para financiar a fuga ainda mais repentina para o Egito (Mt 2.14-18). O nascimento do Cordeiro significava também a morte de muitas criancinhas, assassinadas pela fúria invejosa de Herodes que desejava o título de único rei em Israel.

Hoje, muitos de meus amigos me desejam feliz natal enquanto encaram corações partidos, câncer e outras doenças devastadoras. Este natal contrasta com as musiquinhas de sinos tocando e anunciando a chegada (hoje em dia é de helicóptero!) de gigantescos papais noéis.

O nascimento de Jesus é, sobretudo, tempo de contradições. No dia da sua dedicação do primogenito, que de Deus é Filho unigênito, o velho profeta Simeão avisou a mãe que uma espada traspassaria seu próprio coração (Lc 2.21-35). Yehoshua – Salvador – será grande redentor, filho do Altíssimo, Luz do mundo e Pão da Vida – mas não teria onde reclinar a cabeça. O dom da vida veio envolto em panos de morte, e diferente dos muitos aromas que associamos ao natal hodierno, a mirra que recebera entre os presentes de nascimento seria semelhante ao nardo que seria usado sobre seu corpo quando ungido em Betânia para morrer (Jo 12.3,7) e em Jerusalém para inaugurar seu novo túmulo (Jo 19.39-40).

Natal fala da glória de Deus na face de Cristo e em vasos de barro!

Uma das grandes contradições do natal é que nossa fé não se firma na prosperidade ou em abundantes bênçãos sobre a terra – mas em meio a lutas, carências, pendências e até mesmo incoerências. Paulo entendeu bem isso ao escrever à igreja de Corinto sobre a morte e vida severina (ou paulina) de um Deus de dura e mui vera misericórdia. Aos meus amados, amigos e até aos que pouco conheço, desejo que essa luz de natal ilumine esplendorosamente nossa vida, quer seja ela de saudades de natais alegres do passado, quer de alegrias borbulhantes no presente, quer esguias mas firmes esperanças futuras:

Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós. Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo. Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida. Tendo, porém, o mesmo espírito da fé, como está escrito: Eu cri; por isso, é que falei. Também nós cremos; por isso, também falamos, sabendo que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos ressuscitará com Jesus e nos apresentará convosco. Porque todas as coisas existem por amor de vós, para que a graça, multiplicando-se, torne abundantes as ações de graças por meio de muitos, para glória de Deus. Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. (2 Co 4.6-18)

Elizabeth Gomes

2 comentários:

maria isabel corcete dutra disse...

Beth, mais uma vez um lindo e rico texto! Obrigada.

nairlisardo disse...

Oi Beth, me lembro da felicidade do Presb. Wadislau quando se preparava pra receber os amados filhos (nora, genros)e netos para as comemorações do Natal e aniversário e, naquele dia ele tentou levantar-se mais cedo do que o normal para cuidar com carinho de todos os detalhes, mas resolveu atender ao chamado do seu SENHOR... são marcas profundas nas nossas vidas... sei bem o que é passar por isso... lembranças amargas que são cobertas pela alegria da SALVAÇÃO e ver a herança que seu pai e sogro deixaram para os herdeiros...
Deus abençoe a amada família!!!