“Eu me desgasto... mas
deixar-me gastar...” – sua voz quase sumia nas reticências. Certamente, até eu
que sou mais devagar, entendo o sentimento. Não será de boa vontade que
permitirei que me façam de bobo; pelo menos, não será naturalmente nem com
facilidade. Já, gastar pelo bem do próximo poderia ser mais fácil,
especialmente se a boa ação tiver a possibilidade de ser reconhecida.
No caso da Eufrosina, o
sentimento estava à mostra: “Sinto-me abusada” – e eu também entendo isso. Às
vezes, quando ocorre comigo, parece que estou sendo punido ou rejeitado ou que
falhei, ou os três, e isso me dá um medo desgraçado. Afinal, todos nós queremos
evitar uma dor já conhecida; faz parte da natureza decaída em pecado. Temos
medo de punição porque somos culpados, de rejeição porque fomos expulsos da presença
de Deus, e de falha porque o sucesso pessoal é só o que nos resta.
Contudo, eu e Eufrosina temos
de saber que esse senso de justiça própria, ou de injustiça, está na raiz do
problema. O nome da raiz é ira, isto é, um sentimento de que uma injustiça foi
cometida. Em si mesma, a ira é salutar. O próprio Deus se ira (Romanos 1.18) e
o apóstolo Paulo ensina que devemos nos irar, mas sem pecar (Efésios 4.26). A
ira brota pecaminosa quando explode imediatamente contra os outros ou quando é plantada
no coração a semente amarga de tragar (Hebreus 12.14-17).
Eufrosina e eu temos de saber
também que o problema já foi resolvido na obra completa de Cristo. Ele pagou
pela nossa culpa e nos atribuiu a sua justiça de maneira que temos paz com Deus
e acesso a todas as bênçãos de sua graça.
Assim, sem medo de culpa, de
rejeição e de falha, não precisamos mais de causar nosso próprio impacto
pessoal, mas deveríamos refletir o caráter de Deus em todas as ocasiões,
especialmente ao enfrentar as dores e os desconfortos dos compromissos com
pessoas. Para isso, Deus nos dá paciência, perseverança, experiência do
conhecimento de nós mesmos e dos outros e, especialmente, o amor, que não temos
naturalmente, mas que o Espírito derrama em nosso coração (Romanos 5.1-5).
De fato, não temos nenhuma
inclinação natural para nos deixar gastar em favor dos outros. Quer ver? Se nós
dois pusermos as mãos numa chapa quente, qual a mão você tiraria primeiro?
Entretanto, no dia que você ou eu amar a Deus sobre todas as coisas e ao outro
como a si mesmo, certamente nos apoiaremos sobre a mão ferida a fim de ajudar
na dor do outro. Nós temos um poder espiritual do alto e de maior valor, a
pulsão da graça de Jesus Cristo, o qual, sabendo
que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia
amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim (João 13.1).
Hoje, nas orações e meditações
da manhã, li na Palavra de Deus: Eu, de
muito boa vontade, gastarei e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que,
amando-vos cada vez mais, seja menos amado (2Coríntios 12.15 - ARC). É
duro, não é, Eufrosina? Mas não será, se a boa vontade de Deus for determinante
no coração. Poderá ser mais difícil no começo, mas será mais fácil no final. No
início, havia o medo de nos perder, ainda que não possuíssemos a nós mesmos;
depois, haverá a posse do coração do outro, ainda
que, amando (...) cada vez mais, seja
menos amado.
Isso não significa que simplesmente
encobriremos os pecados. De modo nenhum! Não os que cometemos contra os outros
nem as que são contra nós nem as que testemunhamos entre os nossos irmãos. Mas,
com efeito, cobriremos tudo com a paz da cruz de Cristo, se preciso for até o
sangue. Em fé arrependida, confessaremos nossas faltas a quem estiver no círculo
do pecado, confrontaremos o irmão faltoso com a verdade em amor assegurada pelo
Espírito, e promoveremos a paz entre todos.
Muitas vezes, Eufrosina, será
como comer porco espinho aos goles de água; mas fique tranquila, pois aquele
que bebeu por nós o cálice da ira e sofreu as nossas dores é o mesmo que nos
deu o cálice e o pão da nova aliança.
Wadislau Martins Gomes
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