domingo, abril 08, 2012

UMA DO NHO LEITE


Seu Antônio Leite, junto à janela ensolarada, parecia feito de pérola sobre ossos. Cem anos! E que cem anos!

– Muito sol, aí, Nhô Leite. Senta mais aqui.

– É, leite quaia, né?

Siá Thereza não perdia uma. Nhô Leite já ia para aquele tempo em que as histórias antigas ficam novas, e contava:

– Quando era novo, trabalhando nos trilhos da Douradense, eu cumia uma panela intera de arroz com feijão. N’é mesmo, Siá Thereza?

– Não sei, num tava lá, num posso menti!

Ele havia se convertido por meio do testemunho de Seu Teixeira, e lembrava com gosto os caminhos do aprendiz de evangelista.

– Era ir daqui pra Pontunduva sem pará nem pra comê. Um pé lá outro aqui, senão virava festa, e evangelização é coisa séria. Lia Bíblia, explicava, e voltava. Não é Siá Thereza?

– Deve sê. Não é de Jesus Cristo?

Naquele dia, Nhô Leite estava especialmente falador. Contou de como havia de aproximado do Seu  Teixeira.

– Era carnaval e eu tinha ido pescá na barranca do Tietê, pegá uns chorãozinho, e, co'as mão suja, cacei uns monte de serpentina que tava no lixo. Sabe mais? Achei um Evangelho de São João meio encardido do lugá. Então pensei: num vo dexá São João no lixo. Daí, para não deixa no lixo nem de lado, fui pedi ao Seu Teixeira que me explicasse. Explicado, eu tava crente.

Depois de uns dedos de prosa, eu ia encerrar a visita com uma oração, e ouvi um "péra aí" da Siá Thereza:

– Nhô Leite tem uma afeiçãozinha proceis.

Seu Antônio se abalou da sala ao quintal, de onde voltou com uma caneca de folha, feita de uma lata de leite condensado, e dois ovos ainda quentes do ninho.

– Pra D. Bete fazê um bolo pros menino. Coisa pouca, mas de coração.

Ele mesmo rebatia a borda da lata com martelo de funileiro sobre uma ponta de trilho, ajeitava a tampa para formar a alça e afixava-a com arrebite de latão. Os ovos eram lá do galinheiro bem cuidado, galinhas caipiras de primeira, e até um garnisé capado para cuidar de ninhada. Tudo "pra num ficá de preguiça e ainda tê pra dá".

Hoje, molhando os olhos de fotografia antiga, deixei que o clarão da janela do Nhô Leite tomasse a minha alma.

– Siá Thereza sabe que é de coração...

– Sei não. Tem de sê cada dia. Até aqui tem sido.

Maturidade é isso, não importando a idade – dez, vinte, cem anos! Abraão, em idade avançada, plantou uma árvore, uma tamargueira, e invocou o nome do Senhor, o Deus eterno (Gênesis 21.33).

Wadislau Martins Gomes

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