sábado, janeiro 15, 2011

DEPOIS QUE A CHUVA CHOVEU, DEPOIS QUE A DOR DOEU...


Chuva que chove e dor que dói é mais do que frase de efeito, lugar comum ou redundância – é pura realidade! A chuva tem efeito, a dor dói e esse tipo de coisa vai ficando redundante. De modos diferentes, o choque da tragédia na região serrana do Rio abala o homem desconsolado, o povo desolado e os espectadores solidários. Os números se somam, quase que desconexos: mais de 500 mortos, mais de 6.000 desabrigados, mais de 8.000 desalojados. O governo federal destina R$100 milhões, o estadual R$35, os Estados Unidos doam US$100 mil e entidades diversas levantam doações assistenciais. Além do Rio, tem São Paulo e Minas, e muito mais, debaixo de água e carentes de cuidado.

As notícias também chovem e doem, e os comentários não podem evitar juízos e soluções redentivas: “Não tem nada a ver com pobre ou rico. É provável que cada vez mais essas ocupações irregulares provoquem danos à natureza que causem esse tipo de tragédia. Agora é hora de solidariedade e trabalhar pela recuperação, e, principalmente, a limpeza dessa região”, diz o Governador do Rio, Sérgio Cabral; e a Presidente Dilma Rousseff distoa: “Houve um absoluto desleixo em relação à população de baixa renda, que foi morar na beira de córrego, do rio e em encosta dos morros... será necessário desenvolver um amplo trabalho de prevenção para evitar novas tragédias”.

É muita chuva, muita dor, e, depois delas, os pontos de interrogação ficam enroscados na cabeça, fisgando a alma. Caladas fundas no peito, no meio de pasmo, do sofrimento e da solidariedade humana, há perguntas que alguns calam na boca e outras que calabreiam alto: Tudo isso, por causa da natureza? Ou “ato de Deus”? (Um editor saiu pelo escanteio: A culpa é de São Pedro). Essas indagações não são novas. Não contando no Dilúvio (o original da Bíblia, e os derivado nos épicos de Gilgamesh e de Atrahasis) nem nas tragédias de Pompéia, Cracatoa ou nos desatinos das grandes guerras, as perguntas correram soltas nas tragédias das Torres Gêmeas, Sumatra, Haiti, Chile, Golfo do México, etc. – e surgem nas nossas tragédias particulares. Naturalmente, somos pequenos diante do porte desses desastres, e, sem explicações que aplaquem nosso senso de injustiça, emitimos juízos e projetamos redenções (guarde isso).

Quando algumas pessoas (Lucas 13.1-5) “falavam a Jesus a respeito dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam”, o Senhor respondeu: “Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas?” Note que Jesus não disse que seria culpa dos galileus. Da mesma maneira, ele não atribuiria culpa dos eventos atuais somente aos “pobres” que constroem em lugar de risco nem aos “ricos” que permitem esse estado de coisas nem aos maus administradores “políticos”. Antes, ele disse que ninguém é menos pecador do que outros: “Ou cuidais que aqueles dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram...” A realidade, do ponto de vista de Jesus, era mais ampla, como ele continuou: “Mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis”. Certamente, ele não quis dizer que todos seriam imolados ou que experimentariam morte catastrófica, mas, sim, que todos estamos sujeitos a uma ordem cuja realidade decorre da verdade de Deus e não de nossos juízos e planos redentores. É claro que, pela graça comum de Deus, sua bondade não é totalmente apagada da mente humana, e nós nos condoemos e procuramos ajudar. Contudo, mesmo nessa ajuda, há juízo e esperança de redenção. O crente quer defender Deus da acusação de maldade, o descrente reprime a noção da existência de Deus, maliciosamente, perguntando: “O seu Deus, onde está?”; o ecólogo autônomo põe a culpa no homem que agride a natureza, o político de esquerda, nos ricos, e, os ricos, nos pobres que constroem “em qualquer lugar”. Os crentes dizem que Deus é bom, os humanistas aproveitam para fazer discurso, e os poderosos pagam “para não perder o investimento”.

Como é que poderíamos obter clareza e paz de mente e de coração para enfrentar a miséria que está aí (contingente) e a bondade que é a única razão para a vida (necessária)? Talvez, se, do alto do morro vizinho à desolação (em que todos nós, espectadores preocupados, nos postamos) e do fundo do vale soterrado (em que choram os afligidos), voltássemos os olhos para Deus a fim de ver suas perspectivas, então entenderíamos a parábola de Jesus, na sequência do texto acima (Lucas 13.6-9). Um homem plantou uma vinha, entregando-a ao cuidado de um viticultor. Por três anos, não achando fruto, deu ordens para que fosse cortada, mas ouviu: “Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”.

A primeira perspectiva dessa realidade é que o mundo não é o que deveria ser. Paulo, na carta aos Romanos 8.20-23, diz que “a criação está sujeita à vaidade [destituída de verdade e sem vigor], não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou”, aguardando ser redimida; “sabemos”, ele diz, “que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora”. Se esse fato não for levado em conta, nenhum juízo de responsabilidade e nenhuma contabilização de saldos, perdas e lucros corresponderão à realidade. Tenha isso em mente: o mundo não é como deveria ser; ele se encontra decaído desde a ocorrência do maior de todos os desastres: a queda, no Éden (Gênesis 3).

A segunda perspectiva é que nós também não somos quem deveríamos ser. No mesmo lugar, o apóstolo escreveu: “todos pecaram e carecem da glória (reflexo do caráter) de Deus” (Romanos 3.23). Isso implica que nossa visão está cerceada pela culpa do pecado e pela rebelião contra Deus, de forma que não apenas pensamos ao contrário da sua verdade, mas que nos colocamos em seu lugar como juízes e redentores para a situação. Não reconhecendo ao Deus que se revela, em níveis diferentes, na natureza e na consciência, na Bíblia e em Jesus Cristo, vivemos sob a maldição de considerar a presente realidade como sendo verdadeira, e de desconsiderar aquele que é o único Juiz e Redentor (cf. Romanos 1.18-32).

A terceira perspectiva é a da natureza da esperança, a qual não é a que deveria ser. De um lado, somos inundados pelo humanismo realista pessimista, que nos move morro abaixo nas encostas da “sobrevivência do mais apto” e da motivação da “instintividade humana” (quer dizer, “quem pode mais chora menos” e “eu quero levar vantagem em tudo”). De outro lado, somos soterrados pelo humanismo romântico, quem nos soterra sob os escombros da perfeição que deveríamos ser e da ânsia por uma salvação que pressentimos, mas que está fora de nossas mãos (que dizer, a felicidade existe, em algum lugar por aí). A perspectiva de Deus é uma de realismo com esperança. O bem existe, pois vemos resquícios dele, por exemplo, na solidariedade do povo; o mal também existe, pois está aí, no desastre da natureza e no oportunismo de alguns (que elevarão os preços e desviarão o socorro). Contudo, tal realidade não abala aquele que confia no Senhor, pois sua esperança não é uma de conforto e abastança, mas de graça e verdade. Isso, finalmente, nos leva à perspectiva seguinte.

A quarta perspectiva é trazida por Moisés, homem de Deus e estadista, cujo realismo com esperança ficou marcado como prova de fé (Hebreus 11.23-29). Nascido na escravidão, no Egito, sob uma lei real que legalizava o infanticídio, foi protegido pelos pais que não temeram o “decreto do Rei”, e criado em palácio real como “filho da filha de Faraó”; não obstante, rejeitou o otimismo dos ricos e o pessimismo dos pobres, preferindo a sorte com o povo de Deus “a usufruir prazeres transitórios do pecado... porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão”. Foi libertado por Deus, juntamente com seu povo, da opressão do Egito para uma terra que não conhecia, mas que possuía mediante promessa do Senhor. Pela mesma fé, ele celebrou a páscoa que antecipava a obra de Cristo, atravessou o Mar Vermelho, e instruiu o povo para a conquista da terra. Sabedor de que não entraria na terra prometida, assim completou sua missão, por que era “firme como quem vê aquele que é invisível”.

Em cântico de oração, o Salmo 90, Moisés descreve sua experiência com Deus como o Senhor da história (“de geração em geração”) em virtude de ser ele o Criador: “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”. O contraste da sua visão do presente à luz da eternidade é mostra da convicção de que a palavra de Deus era verdadeira, e mentirosa toda perspectiva humana decaída. Os dias da terra nada são em comparação com a eternidade de Deus a que fomos chamados para viver. O mundo sem Deus fica à mercê da ira de Deus que se revela contra a rebelião humana, contra a inversão da verdade pela mentira, contra a elevação da autonomia humana. O homem sem Deus é arrastado na torrente como num pesadelo; é frágil como a relva que viça pela manhã e, à tarde, é consumida. Todas as nossas iniquidades, morais, pessoais e sociais, estão diante de Deus; os nossos dias estão todos diante do único Juiz de nossa consciência e de nossos atos. “Acabam-se os nossos anos como um breve pensamento. Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado”. A única maneira de aclarar a mente e acalmar o coração será por meio de saber que o maior desastre já ocorreu – o pecado – e que a grande esperança já se realizou: o Juiz e Redentor de nossas almas já cumpriu a promessa, sendo inundado por nossos pecados e soterrado pelas nossas culpas – ressuscitando para que vivêssemos.

Quem assim crê, sabe por que o mundo está sujeito a enchentes, terremotos, revoluções de classes e conflitos pessoais. Contudo, ele é saciado pela promessa de que, mais do que uma terra prometida, o Senhor está preparando um novo homem para essa terra. A grande pergunta é: somos servos de homens e de coisas, como pintos molhados no atoleiro, ou somos servos de Deus, na chuva e para se molhar, mas pessoas cujo caráter firme persiste na fortuna ou no infortúnio – porque contemplamos o que não se vê, mas que é real?

Wadislau Martins Gomes


Obs.: Um pastor da região, o Rev. Carlos Augusto, da Igreja Presbiteriana de Magé, presidente do Presbitério de Magé, está responsável pelos esforços de coleta e distribuição de auxílio aos sobreviventes, que se encontram em dificuldade. Eles esperam doações de roupas em perfeito estado, roupas íntimas novas; roupas de cama, mesa e banho; alimentos não perecíveis, velas, material de higiene pessoal, limpeza, etc. Esse tipo de material pode ser entregue ou remetido para o seguinte endereço: Avenida 02, No. 21, Jardim Novo Mundo, Magé.

Para doações em dinheiro - Presbitério de Magé (CNPJ 01.264.150-0001/75), Banco Bradesco, Agência 1546-6, conta corrente, 7806-9.


sexta-feira, janeiro 14, 2011

Amoraldo, um evangélico sem nenhum escrúpulo


Mostram-me uns “youtubs” com figurantes que eu conheço. Se houvesse testemunhado, eu não os exporia. Uns têm coisas que o apóstolo Paulo disse que são vergonhosas só de serem repetidas. Outras são tão desrespeitosas que fico vermelho de vergonha – no lugar dos envolvidos e dos distribuidores da infamação. Entretanto, por que está   feito, saio a campo para advertir e proteger incautas ovelhinhas de Jesus, para que chorem com essas piadas e riam com coisa melhor. Aí vai uma historinha que ilustra o porquê de tanta chocarrice (lembra desse termo?) em um meio que deveria ser sério e de tanto abatimento em um ambiente que deveria ser de contentamento.

Converteram-se à igreja evangélica depois de um período de insucessos financeiros. O casal que os convidara era líder do grupo de louvor. Amoraldo falava de boca cheia que sequer se lembrava da mensagem. Quando o pastor fizera o apelo para que fossem à frente os que quisessem uma oração “pelos negócios”, ele se viu de mãos dadas com Malamada a caminho “do altar”. Nem das palavras da oração tinha memória. Só sabia que a vontade de receber a bênção era tamanha que cerrou os olhos até ver faíscas coloridas “para dar partida na fé”. Durante a semana, resolveu experimentar e levou uma oferta à igreja; coisa pouca, pois não tinha “como” nem muita fé. No entanto, como disse o amigo, o do louvor, Deus ainda conquistaria aquele dízimo. Fato foi que a vida mudou. Vendeu um terreno por um total, pelo menos, vez e meia maior do que valia, fez mais contatos no culto de sucesso da quarta-feira do que no último semestre inteiro, e as vendas de cosméticos da companheira quase que dobraram. “Oh glória!” Breve, o dízimo saiu. Agora, Amoraldo, que não canta nem prega, arranjou um lugar no ministério de casais.
           
A igreja é uma dessas de passado tradicional, mas bem contemporânea, agora. Tem tudo o que é preciso para crescer: muito louvor, orações poderosas terminadas em Jesusss, apresentador carismático, mensagens curtas e “relevantes”, boa apresentação de mercado e daí em diante. “O bom”, diz ele, “é que nem parece igreja”. Não é dessas que dizem às pessoas o que fazer; “é só cumprir os votos, que Deus é fiel”.

Foi por falar em cumprimento de votos que Amoraldo e Malamada se sentiram desconfortáveis. Em conversa com a equipe do ministério de casais, alguém tinha usado uma ilustração: “são como os votos do casamento; se não forem cumpridos, a gente perde a bênção”. Seria essa a razão por que, em casa, os negócios não iam lá essas coisas? “Malamada e eu optamos por não casar no papel porque achamos que o amor não pode ser forçado. O senhor concorda?” Quem, eu? Detesto quando a pergunta vem assim, de cara; prefiro quando há um namoro antes; pelo menos, uns carinhos. Mas, como veio de chofre, dei corda: “Você quer dizer, espontâneo?” Ele foi rápido: “É isso, é isso” – e deu para ver o alívio sentido. Dei mais corda: “Tudo que é verdadeiro tem de ser voluntário, não é?” Ele titubeou. “Tudo, tudo, não; tem coisa que precisa ser forçada” – falou, amarrando a ponta solta. Amoraldo não era ingênuo como parecia. “Quando é que não precisa ser espontâneo?” – joguei a bola para o seu campo. “Ah, nos negócios, por exemplo.” Ele prosseguiu, dizendo que venda é uma arte, não é? Ninguém não poderá dizer tudo que sabe a respeito a respeito de um imóvel, condições do forro, situação da vizinhança; “senão não vende”.

Em um sentido, Amoraldo estava certo: existe isso de espontaneidade. O ponto cego, no entanto, é que, hoje, ela é uma virtude que perdeu a autenticidade. Depois do pecado, Adão e Eva se esconderam de medo, cobriram-se por causa da vergonha e mutuamente se desnudaram com acusações (cf. Gênesis 3.6-13). No lugar da boa qualidade ficou uma tendência natural para uma voluntariedade enganosa, que a Bíblia descreve como inclinação da carne; os pensamentos nos parecem genuínos, mas são resultados de um falso senso de justiça (cf. Efésios 2.3) – isto é, o sentimento de que, de alguma forma, fomos injustiçados. Parece-nos genuína, mas, na verdade, essa espontaneidade é usada para justificar a imoralidade dos nossos atos. Esse discernimento é vital para a verdadeira religião cristã.

– Amoraldo, você acha que é possível, para um crente, viver em dois mundos, o da verdade e o da mentira, o da bondade e o da maldade, o das boas e o das más obras?

– Isso eu aprendi na minha igreja: a Bíblia não tem aquela história de uma mulher, acho que Raabe, que foi elogiada por ter mentido para proteger uns israelitas? Às vezes, será preciso mentir. É como o ator que finge ser outra pessoa ou como o jogador que dribla o adversário. Sem mentir ninguém levará vantagem.

– Vamos separar as coisas. O ator desempenha para uma plateia que espera que a verdade da peça seja bem interpretada, e, no caso do jogador, tanto o oponente quanto a audiência esperam que ele faça a finta. Lembre-se, especialmente, de que Raabe não foi elogiada; antes, a Bíblia diz que ela foi justificada. Isso quer dizer que ela cometeu uma injustiça, mesmo que com boa intenção, e que Deus gratuitamente a perdoou, atribuindo-lhe sua própria justiça – e essa justificação vem da justiça de Cristo, que a conquistou para nós, na cruz.

– Pode ser, mas eu não vejo como isso diz respeito a Malamada e eu termos de nos casar no civil.

 Será que tem a ver com a leviandade no trato da palavra, do culto público, da intimidade conjugal, da honra aos que nos ensinam e do valor do valor do bom aprendizado? Mostramos duas caras, e isso têm causas e consequências. Sem dúvida, a Palavra de Deus orienta a que exibamos um coração transparente, mas isso nada tem a ver com mostrar os intestinos. Não fica bem nos tubes da vida nem na igreja.

– A questão, Amoraldo, é que as coisas que se passam nas situações particulares refletem a realidade do grande quadro da vida. Você não pode ser uma pessoa no casamento, outra na igreja e outra nos negócios. Você ama a quem ou àquilo a que sua vida é comprometida. Por exemplo, você venderia um terreno de alguém, sem nenhum documento de propriedade?

Entendo que a experiência da vida desprovida da glória de Deus é uma de falta de paz (cf. Romanos 3.23, 10-18) e solidão (cf. Mateus 19.6); separamos nossa vida da do nosso cônjuge, coisa que a Palavra não permite (cf. Gênesis 2.18); e separamos a igreja, do evangelho; enfim, separamos a vida cristã, como se fosse uma fantasia, da vida que achamos ser real. Contudo, a vida verdadeira é a que procede de Deus e suas virtudes têm de alcançar todas as suas áreas. Deus nos salvou da dissolução para uma inteireza de vida naquele que é a essência de todas as coisas, Cristo. Deus marca sua relação conosco com a adoção selada pelo Espírito e com o casamento da igreja com Cristo. É um pacto em que, por causa de sua graça, ele permanece fiel a despeito de sermos infiéis, e em que, nós, pela fé, temos de ser leais e obedientes – isso é amor. Ambas as marcas se aplicam à totalidade da vida – ao relacionamento com Deus e entre os homens.

– Sabe, Amoraldo, hoje, para ser evangélico basta entusiasmo e vantagem pessoal; mas para ser cristão verdadeiro, tem de haver no peito mais do que simples ar. O amor de que o evangelho fala é um de compromisso, de fazer o bem e de elevação do caráter – primeiro em relação a Deus e, depois, em relação ao próximo da mesma maneira que a nós mesmos.

– Querido, você me ama de verdade? – Malamada sempre leva as coisas para o lado pessoal...

Wadislau Martins Gomes

terça-feira, janeiro 04, 2011

AS TRÊS CARETAS DO MAU DESEJO

Ira e Desamor Natura tiveram três filhas feias como o pecado: Ciúme, Inveja e Cobiça. Ciúme até que era passável; a verruga na cara, diziam as tias Ressentimento e Amargura, dava-lhe um ar de zelo amoroso. Inveja, a do meio, não apenas tinha a boca riscada como traço de desenho infantil, mas o nariz de batata se abria em narinas estufadas, ora congestionadas ora pingando como torneira com carapeta vencida. Cobiça, a mais velha, achava que era bela, mas a coisa ficava pior; tinha os olhos voltados para o lado, dissimulados, e os braços compridos pareciam tentáculos que se moviam insatisfeitos. Ciúme se casou, mas, como não podia controlar a vida do marido, também não conseguia confiar nele; o casamento acabou logo, e ela voltou para a casa dos pais . Inveja não se casou nunca; ficou a ver os maridos de mulheres mais venturosas; alegrou-se quando a irmã voltou para casa com uma mão atrás e outra na frente. Cobiça também não se casou, mas (como direi?) encheu-se de aventuras; primeiro se juntou com aquele negociante e proprietário (mas, você sabe, com o preço dos insumos...); depois, foi com o profissional liberal, “ficou” com o facultativo, o informal... até que se cansou. As três foram morar no mesmo quarto, entre o dos pais e o das tias. O relacionamento não era lá essas coisas. Ira e Desamor sentiam-se abusados porque nem as parentes de lado nem as de baixo pagavam aluguel, pouco ajudavam na casa, e comiam como quê! Ressentimento e Amargura sentiam-se donas da casa, pois estavam lá há mais tempo, e achavam que as meninas seriam umas sanguessugas dos pais. As três donzelas frustradas faziam caretas estranhas e gozadas a cada vez que uma reunião se tornava necessária (aniversário, enterro e coisa e tal).

Em suma, a família era dominada pelo mau desejo, mas mantinha um tipo de acordo não verbalizado, de manter as águas calmas. O septeto conseguia, por algum tempo, cumprir o código do silêncio. Entretanto, as águas calmas na superfície escondiam fundos de lodo que as novelas da TV, os jornais e as conversas dos vizinhos teimavam em levantar. Chegou uma hora em que os sete tiveram de sanear o lago, oxigenar a água parada. Foi aí que ouviram dizer que havia uma igreja nas proximidades, prometendo paz sem igual. Paz é bom, pensaram; e lá foram, em roupa de domingo, sorriso encomendado para fotografia e a expectativa dos visitantes. A falta de jeito ficou por conta da primeira vez; não sabiam se e quando deveriam se levantar ou sentar. Contudo, logo se deixaram conquistar pelo calor dos “irmãos”, pelo ânimo dos “cânticos espirituais” e pelo entusiasmo do “pregador”. Esse pastor João de Deus da Silva tinha um carisma que jamais haviam visto igual. Falava de Jesus Cristo como se o tivesse conhecido. O certo é que, depois de um tempo, até em casa a coisa mudou. Aprenderam a orar pela manhã, à tarde e à noite. A Bíblia, então, era um apoio: começaram a viver “pela fé, em nome de Jesus!”

O que não sabiam, porém, é que a igreja é o pior lugar para manter a paz quando não existe paz. No início, Desamor comprou rosas para Ira; Ira cobriu a mesa com toalha nova e experimentou receitas daquela loira da TV; Amargura se comportou à mesa como uma dama e Ressentimento levou o guardanapo à boca para cobrir o arroto disfarçado de pigarro; Ciúme, Inveja e Cobiça, até mesmo, lavaram as mãos antes de se assentarem para comer. Era a paz! Passaram a se chamar, carinhosamente, de Irene, Momô, Marinha, Ressecê, Ci, Ive e Bibi. Mas, como disse o Drummond de Andrade, “se me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução”.

Um ano depois, já se sentiam “em casa” em qualquer atividade da igreja. Lá em casa, as cortesias voltaram a seguir o código do silêncio, mas aprenderam a conviver por meio da isolação em grupo. Na igreja, Momô tinha lá algumas pessoas com quem não “ia com a cara”; Irene achava uma injustiça que todos tivessem seus ministérios e que Momô ainda fosse considerado neófito (“Sei lá o que é isso, mas não acho certo”); as três graças, Ci, Ive e Bibi, eram as únicas que trabalhavam em silêncio e, se não gostavam, engoliam as coisas seguidas de um bom copo de água; Mara e Ressecê descontavam na reunião de oração (“Senhor, ajuda” fulano e beltrano, “a deixar” tal e tal “pecado”). Logo, tinha gente, em privado, pedindo a Deus que ajudasse os Natura. Uma, mais despachada, franca que nem o soluço da carne, abriu o jogo: “Vocês precisam de um reavivamento” – que quer dizer que precisavam entrar no sistema de vida da igreja. O clima natural “pegou” como epidemia de resfriado. Não demorou muito para que aquelas águas também ficassem poluídas: os desejos postos em outros deuses esculpiram imagens de necessidades insaciáveis, em nome das quais (e não de Deus), as pessoas procuravam, sem descanso, obter autoridade sobre todos; as consequências foram aquelas que já conhecemos – tentavam obter autoridade por meio de “espiritualidades” marotas, matavam (“Ai, que ódio!”), adulteravam (“Que é que tem, boba; todo mundo faz!”) roubavam (“Ei! É meu direito!”), davam falso testemunho (“Eu, defendê-lo? É um pecador...”), e faziam planos para satisfazer a cobiça (“Ah! se apenas eu...”).

Um dia, o pastor João de Deus chamou de lado a um dos homens experientes na vida cristã, João Evangelista, e pediu que “desse um jeito”. E lá foi o pobre de espírito, esposa do lado e Bíblia na mão. O bom é que ele tinha a Bíblia também no coração. Dois dedos de conversa, e descobriu que os Natura não haviam tido nenhuma experiência com o amor e a justiça de Deus.

– Mas não temos ido à igreja já há mais de ano?

Pomba de coração e serpente na astúcia, o experiente levou-os aos relatos bíblicos da libertação do povo, da escravidão do Egito, e dos quarenta anos no deserto até que tomaram posse da terra prometida.

– Uma geração inteira precisou morrer para que o povo entendesse a promessa de uma nova vida.

– O quê? Que geração é essa que terá de morrer? – As sobrancelhas circunflexas enfatizaram a pergunta, e pais, irmãs e tias cruzavam olhares temerosos e temidos.

– Toda uma geração de pecado – respondeu, especialmente os pecados a que nos acostumamos. Para nascer de novo – continuou o experiente – é preciso conhecer a paz com Deus por meio da morte e da ressurreição de Jesus Cristo.

– Ué, já não somos crentes?

– Entendam isto: todos nós, por natureza, estávamos separados de Deus por causa da nossa rebelião e inimizade. Assim, segundo o plano para nos salvar e adotar em sua família, Deus enviou seu Filho, Jesus Cristo, para morrer a morte a que estávamos condenados e para ressuscitar a fim de que recebêssemos de sua vida. Deus fez tudo o que era preciso para que experimentássemos isso. De nossa parte, só temos de aceitar essa dádiva de maneira autêntica, isto é, com a fé verdadeira que é demonstrada pelo arrependimento, e gozar a segurança e o poder do Espírito Santo para viver a vida cristã.

– Mas a gente tem fé, disse um.

– E arrependimento, completou outra.

A isso, o experiente Evangelista apôs:

– Fé e arrependimento não são termos “igrejeiros”, mas, sim, uma completa rendição diante de Deus, acatando a sua Palavra como o poder a que temos de obedecer mais do que obedecemos nossos próprios desejos.

Para tornar curta uma conversa longa, a experiência que a pessoa tem de ter com Deus, qualquer pessoa, nós e os Natura, deverá tratar de algumas questões fundamentais. Primeiro, temos de saber que nossa fé é baseada no fato de que “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). Segundo, temos de entender que esse amor é experimentado quando nossas questões quanto à ira de Deus são resolvidas mediante o arrependimento que reconhece que Deus “se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Romanos 1.18) e que Jesus Cristo fez a paz entre nós e Deus, conferindo-nos sua própria justiça. Terceiro, essa paz implica que não podemos abrigar amargura ressentida em nosso coração, sob pena de não vivenciarmos fé e arrependimento (Hebreus 12.14-17). Quarto (como está escrito em Efésios 4.21-32), todo convertido tem de ouvir a Deus e àqueles que ele designou, e ser ensinado a examinar o próprio coração, a fim de despojar do “velho homem” e renovar o “espírito do... entendimento”, revestindo-se de Cristo. Não bastará tentar uma cara de verdade e guardar ciúme por dentro (a gente acaba achando que é franco quando, de fato, é julgadora maledicente); será preciso pertencer a Cristo e à sua igreja. Não bastará fingir piedosa docilidade enquanto o coração resfolega ira como a antiga “maria fumaça”; será preciso resolver a ira sem dar tempo à amargura e ao ressentimento nem dar lugar ao diabo. Não bastará deixar de furtar coisas e deveres mútuos, mas será preciso trabalhar para se sustentar e ainda ser generoso. Enfim: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem. E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o Dia da redenção. Toda amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmias, e toda malícia seja tirada de entre vós. Antes, sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo”.

Os Natura? Só vendo! Irene chama o marido de meu amor e ele devolve com “meu bem”, e sequer levantam o riso da família. Ressecê e Marinha estão uns amores: “Precisam de alguma coisa? Em que posso ajudar”. Ci, Ive e Bibi esbanjam uma beleza de coração que até o rosto aformoseia. E sabe o quê? Dá gosto ir à igreja!
Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, dezembro 31, 2010

Ano novo, assassínio, sequestro e companhia ilimitada (1)


Depois de um sonho em que eu me defendia de um intruso em minha casa, fiquei com aquela peça do Chico Buarque na cabeça: “Hoje eu sonhei contigo e caí da cama..." (“Não sonho mais”). E olha que, quando ouvi pela primeira vez, achei que era uma dessas descomposições pop de “ídolo nacional”. Mais tarde, como o cheiro do feijão do caso do João Ratão, do Casamento da Dona Baratinha, o som foi entrando pelos meus ouvidos, tomou conta da atitude, tomou conta da mente, tomou conta de tudo. Hoje, passados os anos, já me esqueci de quem é que eu queria ver perseguido por orangotangos candangos (pois ele mesmo pediu para ser esquecido); só não me esqueci do sentimento de ira que faz a gente babar na fronha. Acordei com esse sentimento. Veja só! Velho, devendo ser, a esta altura, bom de casa e de rua, ainda sonho com sentimentos de injustiças covardes, que só me pegam quando estou dormindo. Essa é de matar, não é?

Exatamente por que é de matar, é que temos de lidar com essa ira. É isso aí: Ira mesmo! Certo que ela tem seu lugar. A ira está para a dor assim como a misericórdia está para o amor. Trocando em miúdos, a ira é boa e louvável enquanto é um sentimento de que alguma coisa está errada (“Irai-vos e não pequeis” – o negócio é não pecar, pois senão, é o diabo; ver Efésios 4.26-27). É como a dor, esse incômodo que impede que eu vá além dos meus limites e me fira, mas que, quando rompe seu próprio limiar, dói mais do que dente do siso encavalado. Quando o diabo pega, a ira vira amargura e enrosca na cabeça, ressentida, como cisco no olho que mesmo depois de tirado ainda raspa. A solução cristã é sobrepor o desafeto com a redenção que há em Cristo Jesus. Há uns dois ou três versículos, na Bíblia, que, se você se lembrar deles na hora “h”, até ajuda: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Romanos 5.1); “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12.14); e “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mateus 5.44). A questão é como fazer para amar aquelas pessoas que claramente não permitem ser amadas? Como amar meu inimigo? Parece pesadelo! Contudo, não é para desesperar. Se Deus conseguiu que eu despertasse, ele poderá acordar a qualquer um. E ele quer. Por isso mesmo, juntamente com suas promessas, ele fornece mandamentos; aquelas motivam o coração e estes nos capacitam a mudar o comportamento.

Pense um pouco comigo sobre dois mandamentos do Decálogo (usei o termo, agora, só para ver se você não estava cochilando – são os Dez Mandamentos, ô): o sexto mandamento, “Não matarás”, e o oitavo, “Não furtarás” (Deuteronômio 5. 17 e 19). O primeiro é mais simples. Entendendo certo as ordens bíblicas aparentemente antagônicas, de não matar e de matar, o bom intérprete conclui que tem mais coisa aí. Com efeito, o termo hebraico usado no texto é ratsah, que tem mais o sentido de “tomar nas mãos, voluntariamente, o direito de tirar a vida ao semelhante”, do que o sentido de homicídio acidental ou de legítima defesa (pessoal ou institucional, como em caso de guerra ou de pena capital). Ora, esse cara que de quem gratuitamente não gosto, ou que gratuitamente me ataca, é meu semelhante, criado à imagem de Deus, a quem não tenho o direito de roubar a vida. A promessa do Senhor é que a vida procede de sua graça, e que o respeito à vida do outro pressupõe o valor da minha própria vida. Não poderei matar aquele a quem Deus criou assim como não poderei matar a imagem de Deus plasmada em suas criaturas. Não poderei matar seu caráter por meio do ódio ou da maledicência (“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”, 1João 4.20; “Todo aquele que odeia a seu irmão é assassino”, 1João 3.15; “todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento”, Mateus 5.22).

O segundo, o oitavo mandamento, é um pouco mais complicado. “Não furtarás” não diz respeito à simples apropriação indébita (ainda que esse crime seja igualmente condenado por Deus), mas está mais próximo do sentido de sequestro. A melhor ilustração disso é o caso de José, sequestrado e vendido por seus irmãos em função de lucro pessoal. O Deus que nos libertou da escravidão do ambiente decaído em que vivemos, da esfera de morte à espreita dentro de casa e nas ruas, e que nos remiu do cativeiro interior que nos devora de desejos de prazer e de poder, ele mesmo não quer que o homem criado para a liberdade se torne escravo de homens. Como é que eu, na mesma terra e sujeito aos mesmos troncos e barrancos do caminho, posso pensar em controlar o homem que Deus criou para sujeitar, cultivar e guardar as suas obras? Quantas vezes, eu sequestro o bom nome de alguém e só devolvo se o resgate for bastante para elevar meu nome! Isso, e mais o fato de que me deixo levar pela competição para ver quem é mais desgraçado.

Entretanto, há algo mais importante do que toda a importância que essas coisas têm. É o fato de que as razões de Deus para as promessas que mexem com o homem interior e os mandamentos que capacitam a operar no ambiente externo têm maior significância: Deus é gracioso e deseja que o nosso relacionamento com ele seja de íntimo conhecimento da verdade em amor. Seus mandamentos, ainda que contenham forte ênfase moral, não são legalistas, mas éticos; e suas promessas não são vazias, mas plenas de cumprimento. É isso que está escrito: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos” (1João 5.2); e
Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude, pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo (2Pedro 1.3-4).
Exatamente aqui é que está a casa de marimbondos. Com tais princípios motivadores por dentro e tais disposições por fora, como é que fica nossa vida em um mundo não apenas decaído por causa do pecado, mas averso às virtudes cristãs, inimigo de Deus e dos homens (pois a advertência vale para gregos e troianos: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos”, Gálatas 5.15)? Como crer nas promessas e obedecer aos mandamentos de Deus, com tanto zumbido de ameaças por dentro e por fora?

Por um lado, há a apatia medrosa dos cristãos que cedem à profecia do poeta: “Quantos há que os telhados têm vidrosos, / E deixam de atirar sua pedrada, / De sua mesma telha receosos?” (2) Deixam de exercer seu papel profético e se acomodam à faina dos vespeiros à cata do mel de flores murchas que o século planta em cada esquina. Na poética bíblica, não experimentam a vida que recebemos do amor e da misericórdia de Deus:
Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais (Efésios 2.1-3).
Por outro, há a dura realidade de que não é por que eu seja paranóico que não tenha gente me perseguindo. Também está escrito, nas palavras de Jesus: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (João 16.33). O Julio Severo, por exemplo, enfrentando as aguilhoadas do movimento político em favor do “home com home, muié com muié” – que nega a própria identidade a fim de anular a glória de Deus (ver Romanos 1.18-32) –, comenta: “Quanto aos cristãos em geral e aos evangélicos em particular, a Globo sabe que pode pisoteá-los à vontade, pois a reação máxima da população evangélica é manifestar algum leve protesto passageiro e depois esquecer o caso. Em resposta, a Globo boceja”. (3)

Como viver com um barulho desses? Olha a realidade prática de confiar ou não nas promessas de Deus e de obedecer ou não aos seus mandamentos. “Não matarás.” Assassinato é tão comum que ninguém mais liga. Não é que não ligue de ser assassinado. Afinal, o que é que você prefere: ser pobre e doente ou rico e com saúde? O caso é que picada de marimbondo no dedo dos outros tem gosto de mel. Contudo, fazendo um balanço, a coisa assusta. Veja o comentário de Solano Portela e Mauro Meister, no blog O Tempora! O Mores!, sobre coisas que eles não comentaram em 2010: “vários assassinatos bárbaros... Entre esses, o da Eliza Samúdio, cujo maior suspeito é o ex-goleiro do Flamengo, Bruno... Esse crime ocorreu em um contexto de vidas desregradas alimentadas pelo excesso de dinheiro e escassez de moralidade... Outro... foi o do Glauco Vilas Boas, cartunista famoso da Folha de São Paulo, ocorrida no bojo da demência provocada pelo Santo Daime e outras tantas drogas – ...condenadas da boca para fora por expoentes sociais e pela grande imprensa, como instituição, mas consumidas avidamente, por muitos dos que a fazem e nela atuam”. (4) Note como os comentários ligam os atos bárbaros às barbáries do coração. Um mata o corpo com uma espada, outro com pó, outro ainda com ideias contra Deus e, outros mais, com a língua. Onde fica a beleza pés dos que anunciam as boas novas? A vaidade do leque de pavão, em vez de servir de atrativo, apenas exibe a feiúra dos pés. A esperança vai cedendo lugar ao cinismo e, quando percebemos, já fizemos tanta cera em termos de quem somos e do que fazemos que nos restará somente exibir o ferrão e entrar na festa.

“Não furtarás.” Os maus políticos (porque a boa política anda escassa de candidatos) querem se locupletar, como ia o bordão do Justo e Veríssimo, do Chico Anízio. Na maioria das vezes, somos sequestrados e nos quedamos reféns de atos governamentais, de leis de interesse pessoal dos legisladores, de injustiças jurídicas, de causas sociais que nada têm a ver com a vida justa e boa – e ninguém nos consulta depois de havermos pagado o resgate do voto. A coisa piora quando isso vira virtude do jogo eclesiástico. Hoje, sem projeto de sucesso pessoal ninguém vence, nem nas câmaras nem nos átrios; e a moçada segue os passos dos bem sucedidos, cantando: “Tropeça aqui, oi, cai acolá, mas depressa levanta e começa a cantar...” Somos sequestrados por figuras carismáticas sem caráter, líderes astutos, liderados matreiros, mentirosos anônimos, reveladores do pecado alheio, críticos de porta de igreja e tanto louvor mais. De arrependimento e santidade, pouco se fala. Uns caem e não se levantam, outros julgam e não querem ser julgados; a verdade é chamada de mentira e, a mentira, de verdade – e nós fingimos que ninguém falou conosco. Olha que tem filósofo andando com lanterna acesa à procura de honestidade. Eu sei, eu sei que sempre foi assim. Mas entre cristãos? Na igreja? Em que é que o mundo, que tem o direito de nos criticar (“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros”, João 13.35), deverá crer: no testemunho de nossas palavras ou no de nossos atos? Certamente crerá na incongruência! Se os assassinatos de caráter e os sequestros da alma não derem uma parada, como é que prosseguiremos, convidando gente para vir a Cristo, a cabeça da igreja? O que é que convidamos o mundo para ver na igreja: nossa boca, nossas mãos, nossos pés e nossos olhos? Não se engane, o que falamos, fazemos, aonde vamos e o que consideramos – tudo procede das fontes do coração (cf. Provérbios 4.10-27).

Hoje, início de ano, eu faço um voto: prometo que não sonho mais essas coisas; não irei mais para a cama depois de comer iras amargas e indigestas; vou sonhar com você sem cair da cama; sonhos bons, coloridos. E quando em meus sonhos eu for visitar os seus, irei desarmando, munido apenas do resgate que Jesus pagou ao Pai para que fôssemos um nele e com ele.


Wadislau Martins Gomes

-------------------------------
(1) Inspirado em meu trabalho de tradução de Peter C. Graigie, Deuteronômio, em o Novo comentário internacional do Antigo Testamento, a ser publicado pela Editora Cultura Cristã.
(2) MATOS, Gregório de. Obra poética. Org. James Amado. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
(3) Júlio Severo, Gays, perseguição e mentiras: a novela de sempre (2009), Mídia Sem Máscara, sexta, 31 de dezembro de 2010:
http://www.midiasemmascara.org/artigos/direito/75-gays-perseguicao-e-mentiras-a-novela-de-sempre.html
(4) Postado por Solano Portela, quarta-feira, dezembro 29, 2010;
http://tempora-mores.blogspot.com

quinta-feira, dezembro 30, 2010

O QUE É COSMOVISÃO CRISTÃ, MAIS DO QUE VISÃO DE MUNDO?

Meu neto mais velho, adolescente, está nos visitando por alguns meses. Logo que chegou, disse: “Sou brasileiro e americano, mas não falo português”. Meio isolado às vezes e, outras, falador, veio com uma boa durante um passeio: “Vovô, eu acho que a gente é produto das coisas que acontecem. Eu não mudaria nada do passado, ainda que pudesse, porque gosto do jeito que eu sou”. Ele estava meio certo e meio errado, e eu me embaracei nas barbas de avô, que me advertiam para não usurpar o papel dos pais. Contudo, dado que avô é pai postiço e que, como pastor, eu tenho de ser intrometido, fiquei pensando em como interagir com ele para que sua pergunta em potencial fosse respondida de maneira a ganhar o coração.

Em casa, traduzindo, para o português, o comentário de Peter C. Craigie, O Livro de Deuteronômio, deparei com um novo lustro no brilho de uma passagem que já me era familiar: ...pergunta agora aos tempos passados, que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, desde uma extremidade do céu até à outra, se sucedeu jamais coisa tão grande como esta ou se se ouviu coisa como esta... (Deuteronômio 4.32). Para melhor entendimento, vai aí, em ordem:

1. A Bíblia não é apenas uma coleção de peças literárias, mas, sim, a revelação proposicional de Deus, que dá a conhecer: (a) sua natureza divina, caráter santo, e disposição graciosa; (2) a natureza, o caráter, e a condição do homem; e (c) o relacionamento pactual de Deus com o homem e ação no mundo físico e na história. O texto inicia, dizendo: Pergunta agora aos tempos passados, descrevendo o que seja uma cosmovisão. A Palavra de Deus não se presta apenas à leitura devocional, mas contém e desperta perguntas a respeito da realidade presente (pergunta hoje), considerando a história (aos tempos passados). Dessa maneira, as pressuposições bíblicas fornecem os princípios básicos para a interpretação da história.

2. O princípio essencial é que Deus é o Criador e Senhor de todas as coisas, especialmente do ser humano: ...desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra. Gênesis 1 e 2, e Atos 17.24-28 esclarecem que Deus é o ambiente do homem e aquele que concede à criatura que domine e guarde o lugar de sua habitação.

3. Não há limites para o poder nem para a extensão da autoridade de Deus, nem há limites para a pesquisa orientada por princípios bíblicos que o Senhor revelou de muitas maneiras, por meio de muitas pessoas (Hebreus 1.1-4), de muitas formas literárias e, especialmente, por meio de mandamento e promessas: ...desde uma extremidade do céu até à outra. Nada foge ao princípio de que todas as coisas existem em referência a Deus (teorreferência), e ele mesmo no-las entregou para que as conhecêssemos (Daniel e seus amigos foram escolhidos para uma posição de honra, por que eram “instruídos em toda a sabedoria, e sábios em ciência, e entendidos no conhecimento”, com habilidade para viver no palácio do rei, a fim de que fossem ensinados nas letras e na língua dos caldeus”, Daniel 1.4).

4. Todas as coisas devem ser examinadas como sendo obras de Deus, tanto as espirituais quanto as físicas: pergunta... se sucedeu jamais coisa tão grande como esta ou se se ouviu coisa como esta... Deus estava falando de coisas específicas que ocorreram no passado imediato, isto é, da instituição do pacto, em Horebe, do Êxodo do Egito, e do início da conquista da terra prometida. Assim, Deus não estava apenas especificando seu papel de Criador, mas também o de Redentor. Todas as coisas e ocorrências do mundo têm de ser vistas sob o critério das categorias bíblicas de pensamento, da criação, da queda e da redenção (implicando que a criação foi, originalmente, boa, apresenta-se má por causa do pecado e é passível de redenção).

Mais tarde, “adolescentemente”, respondi ao neto o que vai, aqui, de forma adulta: “Bem, nem nós mesmos nem nosso ambiente terreno determinam o que somos; quem nós somos depende de quem Deus é, e de como nos relacionamos com ele”. “Eu sei” – disse ele, continuando na mesma linha de pensamento – “mas, se eu mudar minha história, minha memória, acaba mudando quem sou”. “Certamente mudaria. Entretanto, lembre-se de que Deus é nosso Criador, e, segundo seu manual, quando nos fez, ele sabia o que fazia. Outra coisa, o manual diz que Deus tem para conosco uma vontade boa, perfeita e agradável. Nossa vida não é uma tela que nós pintamos, mas arte do grande Artista, a tapeçaria do grande Tecelão. Fomos criados para refletir seu caráter, e só seremos nós mesmos quando esse caráter for plasmado em nós. A redenção em Cristo nos habilita e capacita a entregar a totalidade da vida a esse conhecimento; e seus mandamentos e promessas previnem que nos conformemos com os sistemas do mundo e, antes, que aprendamos a ser nós mesmos por meio de conhecer a Deus e ao outro (o próximo)”. (Cf. Romanos 1.14).

Acho que ele aprendeu alguma coisa – e eu também. Cosmovisão cristã é visão de mundo à luz da revelação dos atos de Deus na história e geografia da humanidade, a fim de que nós, vendo com os olhos de Deus, alcancemos seus subidos e graciosos propósitos.


Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, dezembro 24, 2010

O NATAL DO VELHINHO E O DO MENINO

Houve tempo em que a pergunta era: “Posso contar ao seu filho que papai noel não existe?” Nessa hora, podia haver, até mesmo, desmaios e ranger de dentes. Já havia quem, simpático e bem humorado, achasse que Jesus, talvez, nem tivesse existido. Aí, sim, podia haver exaltação e riso satisfeito. Mas tirar a alegria do natal, desfazer o mistério do velhinho – isso era o mesmo que falar mal da mãe.

Não é que, hoje, o mito do natal esteja em alta, nem a mãe, mas é que todos nos convertemos a uma religião secular antiga que se vestiu de roupa nova: o consumismo. No tempo antigo, chamavam-na de Mamom, culto ou amor do dinheiro, cobiça e coisas mais. Até que encontram a palavra certa: c o n s u m i d o r! No início, a gente até que estranhava. Parecia muito com o rótulo de glutão, bêbado e por aí. Agora, tem uns que acham bom. Nem ligam para a realidade. A cartinha ou spam vem berrando: Prezado consumidor. A pessoa vira, e diz: “Olha, mãe, me chamou de consumidor.” Daqui a pouco, o dicionário definirá o termo como elogio. Veja, por exemplo, nossas últimas eleições; votamos na propaganda, não na pessoa que nos representaria. Renovando o ditado, nesse mundo nada se cria e nada se perde; tudo se consome. O natal do grande povo é prova inconteste da moderna doutrina do mercado – no mundo e na igreja.

Não é só dinheiro que está envolvido nesse mercado. Tem crente que briga a favor ou contra a comemoração do Natal. Uns, aproveitam a festa com o gosto dos penetras. Outros, por razões diversas. Orgulho, ira e comportamento também servem de moeda “intelectual”. O teólogo disse que poderia adorar o Deus da cruz, mas jamais o menino da manjedoura. Vai nessa, Barth. Quem não se curva diante do encarnado também não tem parte com seu corpo crucificado e ressurreto.

O bíblico Simeão, conhecido de cristãos e de outros poetas nem tanto, foi quem traduziu a realidade do Natal – o Natal do menino. O nascimento é importante como a morte. Simeão, justo e piedoso – da justificação que procede da graça de Deus – disse, cheio de fé: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra porque os meus olhos já viram a tua salvação,” (ver Bíblia, Lucas 2.25-35). Seu entendimento do natal não era um de otimismo romântico de consumidor apalermado nem um de realismo desesperado de sábio convencional. Era, sim, um de realismo com esperança! O velho Simeão proclamou: “luz para revelação aos gentios, e para glória do teu povo de Israel”. Olhos cheios de vida e alma desejosa da vida que há de vir, viu a luz do mundo e glória dos filhos de Deus! Nem papai noel nem coisas poderão superar essa visão. Uma visão que não envergonha aquele que adora, pois é o encontro da própria vocação humana.

Simeão voltou-se para a mãe de Jesus, e disse: “Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações”.

O natal é realmente uma contradição. Não o menino. Nascendo, ele assumiu a vida que está aí, nas casas, nas ruas da cidade. A minha e a sua condição. Passamos o ano, comprando e vendendo coisas, aparência, ideias valorizadas pela alma do negócio e, no natal, uns trocam presentes e outros, veleidades. Simeão passou a vida, esperando uma redenção que desse significado à existência. Quando ela chegou, já podia morrer, pois essa é sua significância: em Cristo, ele teria satisfeito o anseio maior de permanência e importância. Depois de realizada a esperança do sofrimento da glória de Cristo, ele teria um natal que não mais marcaria a contagem regressiva para a morte. O eterno Senhor seria seu presente, sua reunião de família, sua canção, e o verdadeiro espírito de fraternidade (por meio da adoção de filho em Cristo).
Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, dezembro 17, 2010

4/7, 16/12/10, 87%, 80%, 95%, +-2%; 9,1 (03), 8,9 (06), 7,9 (02). ENTENDEU?

Explico. Primeiro, o ibope de 4-7/12, divulgado em 16/12/10, mostra dados impressionantes sobre a popularidade do Presidente Lula, 87%, e do governo, 80%; a pesquisa afirma com precisão de mais ou menos 2% que garante 90% de confiança. Segundo, o censo escolar discorda da otimista avaliação oficial do governo, no item “educação”, e mostra que o número de alunos vem decaindo em dezenas nos últimos anos: de 9,5 milhões em 2003 e 8,9 milhões em 2006, para 7,9 em 2009.

Não, não estou misturando porcentagem com termos de grandeza numérica. A coisa é outra. O que me parece é que tanto número colocado dessa maneira dá a impressão de verdade e de realidade, quando, de fato, só serve para forçar o círculo vicioso da má informação e da má coleta de informação.

Confundiu mais? Explico. Primeiro, a coleta de dados não informa as localidades em que as tomadas foram feitas, e é sabido que, em termos de pensamento, nossa população não é uniformemente distribuída. Tem também a questão de que o pesquisador e a pergunta manipulam a resposta (até mesmo, o silêncio influência o pesquisado). Segundo, os números de alunos que atendem ou abandonam as escolas não são tão bem monitorados que permitam um balanço dessa precisão. Assim, alguns desses números são inexatos e, outros, apenas probabilísticos.

Por que essa consideração? Tem mais a ver com as aprovações e desaprovações do povo, seus métodos críticos e preferências, mais a ver com a mídia nascida desse povo e o círculo vicioso da crença/imaginação, do que com seus números. Uma boa ilustração do que seja esse círculo vicioso, é o dicionário, que define palavras, usando palavras. Assim, o povo mal escolado produz o noticiador e a notícia informa o povo. Aquilo em que essa maioria de 9,999% se apóia para opinar com 95% de certeza fica no ar, como em uma vasta memória virtual. É aquela coisa do “eles falaram”. “Quem?” “Eles, ué!”

O que faz girar essa roda é a paixão, que é o pensamento centrado no desejo; e desejo é coisa criada por necessidade; e necessidade, hoje, é criada pelo mercado e pelo consumo, oscilando entre o gosto pelo entretenimento (imperioso, se regrado) e o dever (não fosse esse dever requerido dos outros em função do nosso “jeitinho nacional”).

O cristão, pelo menos, poderia saber mais do que isso. Tiago, irmão de Jesus e autor da carta bíblica que leva seu nome (Tiago 1.9-27), quer que o cristão “seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar”. É preciso notar que nosso povo anda irado, às vezes, sem saber por quê. Assim, não dá ouvidos à verdade e fala o que vem à cabeça. A injustiça que sente não tem nada a ver com a injustiça de opera. “O governo cobra muito imposto; desse jeito, eu não pago”, diz o dono do bar. “Nem eu”, diz o do outro lado do balcão. “Então, eu aumento o preço da pinga”, replica o esperto. (Obrigado, Chico, pela ilustração.) Vai daí, que impera a babel; a imaginação da notícia de jornal da manhã seguinte traz: Lula não conseguiu vencer a criminalidade: 50% dos que estavam um bar mataram os outros 50% (com 2% de variação para mais ou para menos. A arma do crime, pensa o leitor, é a injustiça social.

Tiago, entretanto, continua, dizendo que “a ira do homem não produz a justiça de Deus”, isto é, o sentimento de injustiça do homem não produz a verdadeira justiça do amor de Deus. Uma porcentagem de homens bons ou maus não rege os padrões de comportamento de uma sociedade. O que rege, na realidade, é a crença que cada indivíduo tem em relação a Deus. É claro que, para exatidão desse dado, temos de localizar a fonte da informação: a pessoa humana não é como era para ser, em função de a humanidade (em Adão) ter se rebelado contra Deus, estando, assim, carente do reflexo de seu caráter (Bíblia, Romanos 3.23). Do lado de lá da vida, cada um crê naquilo que percebe, e como não tem a luz do entendimento de Deus, imagina sombras da realidade e segue as próprias conclusões.

A proposta de Tiago é que o comportamento individual e coletivo seja despojado de impureza e maldade por meio do acolhimento da palavra de Deus, a fim de que verdade e justiça determinem o relacionamento freguês/proprietário e governo/povo. Sem essa palavra, não haverá conversa e tudo se resumirá a um “cada um por si e o diabo para todos”. Entretanto, há outra coisa: sozinho ou em turma ninguém muda a natureza. Para tirar a roupa das atuais condição e situação, somente com a interferência de Deus. É isso que está escrito em outro lugar da Bíblia: assim “aprendestes a Cristo... no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo... as [paixões] do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento” (Efésios 4.20b-23).

Com a palavra de Deus implantada na alma, será possível mudar a natureza humana e o comportamento do indivíduo e da sociedade. Mas, olhe: Tiago adverte que, para ser efetiva, essa palavra tem de ser ouvida e praticada. Caso contrário, será como alguém que se olha no espelho e, depois, indo embora, esquece-se de como era feio. Aquele que considera a lei da liberdade (liberdade com responsabilidade), diz ele “será bem-aventurado no que realizar. Especialmente, dominará o ouvido e a língua, e não se deixará levar pelo engano do próprio coração, vivendo uma religião que não é vã. “A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo.

Se for assim, não creio que 50% das pessoas ou sociedade vivam nessa paz, mas se 10% vivessem, 100% viveriam melhor. A aprovação ou reprovação do Presidente ou do governo seria feita com honestidade por uma minoria que constrangeria a maioria ao acato às autoridades civis, que são constituídas por Deus. A escola seria uma atração exercida por motivos justos, do conhecimento e do preparo, regulada por méritos e não por medidas coercitivas, e a comunicação seria clara, sadia e proveitosa.
Wadislau Martins Gomes

quinta-feira, dezembro 16, 2010

BINGO!


"Se não votar os bingos, não votamos nada", disse o deputado Paulo, o da Força (PDT-SP), no dia 8 de dezembro, lá na terra das grandes decisões. E pensar que, para mim, ainda não saiu o número da sorte! Veja bem, eu não tenho nada contra a sorte; meu problema é com o azar.

(Aqui, tenho de apelar para um parêntese longo, pois não quero ser religiosamente mal entendido. Há quem diga que ser contra bingo é coisa de religioso; que ateu que se preza tem de jogar bingo. Pessoalmente, não sei de que sorte é essa ideia, mas já que um voador chamou esse número, vai lá: a Bíblia não fala nada contra a sorte. No Antigo Testamento, o leitor acha o lançamento de sorte em meio às coisas mais sagradas e em meio às menos santas. O termo sorte (hebraico, gowral), na maioria das vezes, tem o sentido de “parte”, “porção”, “herança”, “fortuna”, “diversidade”, “escolha” e, quando qualificada com a expressão “lançamento de”, é essa sorte que a gente quer e deseja de maneira romântica. Urim e tumim [hebraico e não tupiniquim], que estavam entre as pedras no peitoral das vestes sacerdotais [Êxodo 28.30], eram usadas para saber a vontade de Deus, no primeiro sentido. Não era um “jogo”, mas uma maneira de confirmação divina. No segundo sentido, há menções de sorte lançadas para tomadas de decisão [Provérbios 18.18] e para saber coisas escondidas, como no caso dos marinheiros e Jonas [Jonas 1.7]. No Novo Testamento, há o caso mais conhecido do uso de sorte: “E os lançaram em sortes [grego, kleros], vindo a sorte recair sobre Matias, sendo-lhe, então, votado lugar com os onze apóstolos” [Atos 1.26]. Em tempos mais recentes, os puritanos proibiam as crianças de usufruir o jogo de dados porque era coisa sagrada, só para confirmar oração. Note que não se trata de problema com sorte. Quando ela significa confirmação do Senhor [veja o caso de Gideão e a lã molhada ou seca, Juízes 6.37], não implica pecado. Entretanto, quando pretende substituir a vontade de Deus ou os meios apropriados para o conhecimento dela, então, existe pecado. Miquéias foi direto ao cerne do problema: “Portanto, não terás, na congregação do Senhor, quem, pela sorte, lançando o cordel, meça possessões”. A questão é que ninguém pode depender ao acaso ou “torcer” para obter alguma coisa – Deus tem nossa sorte em suas mãos! [Ver J. Douma, The Ten Commandments, Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1996, pp. 101-104.] Assim confie em Deus, e boa sorte”).

Agora, voltando à prioridade do bingo, o problema é que jogamos demais com o azar. Fazemos isso só na escolha das pessoas que “dirigirão” os destinos da Pátria, e elas mesmas fazem, na maneira como dirigem. “Vê se me arranja aí um projeto que eu ando meio apagado”, diz um, e outro, “vota conosco que nós votamos no seu”, e o governo: “Se aprovarem meus projetos eu deixo vocês jogarem bingo”. A sorte é que há deputado bom, para equilibrar esse azar.

Em um País em que a lei é superior à justiça, a sorte está lançada. Criminoso condenado não fica na cadeia porque a lei diz que, com bom comportamento (!) ele pode sair logo. Cuidado, porém, que se for pego por matar a fome, sem pagar, você acaba tirando uma de vítima condenada. Se não houve crime cometido, pior. Aí, sem processo, sem julgamento e sem as amenidades da lei, é capaz de você ficar pra sempre perdido no tribunal de apelação, entre as petições de advogados idealistas. Mas, sem o bingo, que fazer?

O estado brasileiro é muito paternalista. Digo isso com todo respeito e honra que mereceram os meus pais e que merecem os magistrados civis sob o governo de Deus, diante de quem terão de prestar contas de todos os jogos políticos. Dos dons Pedros a Getúlio, dos generais de plantão ao Lula, é sempre o “painho” que cuida das coisas. E cuida bem! Até a mãe dos brasileiros é uma senhora mãe. E tem mais, brasileiro, porque se sente órfão, gosta disso. Mas quando é que chegará a emancipação da educação, da indústria, do comércio? Quando é que vamos estar maduros para ir e vir sem o controle senão do bem ou do mal que eu fizer? Quando é que os bons serão recompensados e os maus, punidos? Quando é que o bingo dos impostos excessivos, e de leis que desrespeitam o indivíduo em função do “social” (que claramente é uma sociedade de indivíduos), deixará de sustentar corrupção e impunidade? Até quando só o futebol, a TV e a praça serão a sorte do povo? Se pensássemos menos em termos de Roma e circo e mais em termos de verdadeiras prioridades, não estaríamos discutindo sobre coisas que podem ser criminalizadas e descriminalizadas ao sabor das massas. Nem adianta dizer que o lucro do bingo irá para o futebol, projeto minha casa e que mais houver, pois bingo não cria dinheiro; antes tira a casa e a roupa do corpo de muita gente desesperada. Mas, sem o bingo, que esperança?

O direito do menor, então, é um crime. Não que o menor seja criminoso. O direito dele, do jeito que está colocado, é que é. Menor não aprende a trabalhar desde criança, para aprender que trabalho é coisa ruim; não pode ser disciplinado mais firmemente, para aprender que pai e mãe não estão com nada; e não podem ser responsabilizados, que é para ficarem surpresos quando, adultos, virem baixar o braço da lei. Os menores são roubados aos pais quando esses pais perdem muito do poder pátrio e o estado ascende à posição de autoridade divina. “Com a criançada presa por mais tempo na escola, breve teremos bons cidadãos!” Os professores, coitados, é que apanham no lugar dos políticos. Mas sem o bingo não há sorte à vista.

Ora, gente, minha cartela já está cheia de milho, e minha alma, cansada de jogar por palitos de fósforos. No computador, nunca joguei, mas se há quem queira jogar, que jogue! Nós prosseguiremos, advertindo que azar é ruim. Começa com a motivação do ganho divertido, passa pelo ganho fácil e acaba na grande perda; depois, tem o fato de que a “adrenalina” da perda é bem maior do que a do ganho! Para que arriscar se não houver risco? Também, lembre-se de que a sorte grande é rara e que o que é raro é caro. Os banqueiros e os políticos do jogo dizem, como que convidando ao crime: “lança a tua sorte entre nós; teremos todos uma só bolsa” (Provérbios 1.14), certamente, alegando investimento em áreas de educação e saúde. Do poder do lobby, ninguém fala. Quanto a nós, continuaremos a dizer que só o Senhor dirige a nossa sorte, e que sua vontade é conhecida na Escritura Sagrada – sem necessidade de pedras, dados ou lãs. Melhor é a verdade em amor do que o amor do dinheiro (Efésios 4.24; 1Timóteo 6.10). Em nossa bolsa só entrará o dinheiro que for ganho com trabalho honesto, criativo e produtivo, e só sairá para suprir para nosso sustento e o dos nossos, além do cuidado com quem tem necessidade (Efésios 4.28).

Precisamos da verdade (não de verdades, mas a de Deus), de justiça (não a de distribuição de renda sem trabalho, mas as da obra de Cristo), de honestidade (não a eleitoreira, mas a que é moral e ética), e de amor (não o livre de compromisso, mas o que opera o amor a Deus e opera o bem no mundo (cf. João 4.1-21). Contra estas coisas não há bingo.




Wadislau Martins Gomes

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Aconselhamento cristão versus psicologia?

Já passa do limite. Do jeito que a coisa vai, muitos psicólogos e conselheiros precisarão de ajuda para resolver problemas de ira e de maledicência. Digo isso entre jocoso e sério. A parte séria, pelo menos, merece uma resposta satisfatória. Mas como satisfazer ambos os lados? A única maneira que vejo, será por meio de romper a barreira e permitir uma boa conversa que provavelmente não convencerá quem não quiser entender, mas que esclarecerá qual seja o limite.

Primeiro, consideremos a relação entre a Bíblia e a psicologia. Explicando aos meus alunos, costumo perguntar: Entre a Bíblia e um livro de psicologia, qual você escolheria? A resposta dos cristãos, na maioria das vezes, é: A Bíblia, lógico! Por mais piedosas que pareçam, qualquer das escolhas é inadequada, Quem diz preferir a psicologia, terá exaltado o livro à altura da Bíblia; quem preferir a Bíblia terá rebaixado a Palavra de Deus à altura da psicologia. Isso é por que os dois são elementos de diferentes categorias. A psicologia é o estudo observacional do homem e a Bíblia é a revelação do criador sobre o conhecimento dele mesmo e da criatura, em uma relação essencial. A Bíblia foi dada ao homem para, entre outros usos decorrentes, ser o critério para interpretação da vontade de Deus, do homem e do mundo – incluindo o livro de psicologia. Não é fato que existem diversos tipos de aconselhamento (vocacional, profissional, legal, médico etc.)? Não existe a expressão aconselhamento psicológico? Poderíamos dizer aconselhamento aconselhar ou psicologia psicológica? Isso mostra que são termos diferentes.

Segundo, consideremos as psicologias. Estranho o uso do plural? Mas é isso mesmo. Cada teoria de psicologia expõe e defende interpretação e processo diferentes e, à vezes, antagônicos. Ora, há uma razão para isso. Deixe-me ilustrar. Imagine uma estrada plana e reta em que, onde a vista alcança, você enxerga algo como uma metade de uma esfera. Um besouro? Uma quenga (meia casca de coco)? Um capacete de soldado? Aproximando-se o objeto, você advinha mais. Uma tartaruga? Um tatu galinha? De repente, você percebe: é um fusca! Bem próximo, a satisfação do conhecimento enche os olhos. Mais perto, um metro, é uma raridade, sem amassado e com a cor original. Quase junto, dois centímetros, e tudo que você vê, agora, é o brilho de um pedaço bem pequeno de cor e luz, impossível de descobrir a natureza. Se existisse elefante polido e pintado, poderia ser um deles. Imagine, então, que diferentes observadores estejam olhando para estradas diferentes, tentando elaborar teorias sobre a natureza de objetos parecidos que se movem na direção deles? Certamente teríamos tantas teorias quantos fossem os observadores. Assim, temos tantas psicologias quantos são os estudiosos dos movimentos internos e externos dos homens. Isso é mau? Não por isso. O Dr. J. Adams, pioneiro da reabilitação do aconselhamento bíblico disse, em What About Nouthetic Counseling (Grand Rapids: Baker, 1976, p. 31), que ele mesmo tirou proveito de estudos psicológicos sobre o sono, e que não vê com maus olhos a psicologia observacional (método científico honestamente aplicado). Ele rejeita, sim, o uso impróprio de abstrações das psicologias como métodos de redenção do ser humano.

Essa perspectiva nos leva a uma terceira consideração: o que é que a Bíblia diz sobre aconselhamento e psicologia? Em 1Coríntios 2.9-16, o apóstolo Paulo disse que nem olhos viram nem ouvidos ouviram, nem o coração humano pode entender o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Isso, ele disse sobre o conhecimento do homem pelo próprio homem, tanto do incrédulo quanto do crente, dando como referência o conhecimento do Criador. Os crentes, ele continua, recebem revelação do espírito que a tudo perscruta – as profundezas de Deus e do homem. O método desse conhecimento é, portanto, espiritual e não natural. Aqui, Paulo estabelece a distinção feita acima: o espiritual não é paralelo ao natural nem somente uma questão de divisão interna do homem. Na verdade, espiritual e natural são conceitos que pertencem a categorias diferentes. Além disso, o espiritual é uma totalidade abrangente que compreende e deveria reger o natural. Hoje, tal como os observadores das estradas, vemos algo com forma de homem, mas não entendemos sua natureza nem sua condição. Se o Espírito não no-lo revelar, concluiremos qualquer coisa.

O fato é que o Espírito nos revela, na Palavra, que o homem foi criado bom, que presentemente se encontra decaído por causa do pecado, e que ele é passível de redenção. Ocorre que o homem decaído não entende nem discerne as coisas espirituais. Paulo disse que o homem espiritual escrutina todas as coisas e ele mesmo não é escrutinado por ninguém; o homem natural, por sua vez, não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. A palavra grega traduzida como natural, nesse texto, é psuchikos (psíquico). Você vê outra interpretação senão que o aspecto interior do homem sem Deus, a psique, é o objeto de estudo das psicologias? Não estou esbordoando os psicólogos, mas apenas, dizendo que a consideração do homem somente sob o critério psicológico é considerá-lo fora de sua natureza, descartando sua condição e sem possibilidade de tratar seu verdadeiro problema. Tudo o que as psicologias podem fazer, é tentar adivinhar. Muitas vezes, o gênio que Deus concedeu a todos, crentes e incrédulos, não pode evitar o reconhecimento de coisas verdadeiras no homem e no mundo. Contudo, se falha em considerar a Deus e sua revelação quanto ao homem e ao mundo, ele fica como quem imagina diferentes coisas a diferentes distâncias.

Nem toda a sabedoria deste mundo poderá entender a totalidade do que Deus tem para os seus. Nenhuma psicologia poderá resgatar o homem de seu problema básico. Só Deus, em Cristo, é Redentor e Senhor da humanidade. É certo que, uma vez conhecido o fusca, alguém poderá lavá-lo, consertar suas partes e dirigi-lo, mas jamais poderá lhe conceder vida, mente, vontade e sentimentos. Lembre-se do que Paulo também disse: Ninguém, senão Deus, no Espírito, poderá assegurar a salvação; ninguém, senão Deus Trino poderá assegurar o anseio último da alma, isto é, um senso de dignidade, pertencimento, uma imaginação interpretativa acurada e criativa, nem uma operação interior e exterior que reflita a razão de sua própria criação. Fomos criados para habitar em Deus, para pensar seus pensamentos e para atuar em verdade e amor sobre as obras de Deus.

Você percebe, então, que não se trata de uma rivalidade entre aconselhamento bíblico e psicologia secular? Como Paulo disse em outro lugar, nossa luta não é contra o sangue e a carne (Efésios 6.12). Deverá haver uma psicologia bíblica – biblicamente teológica antropológica e soteriológica, – que não seja uma visão reduzida do homem de maneira secularmente antropológica, sociológica ou fisiológica. Antes ela deve vir de Deus, ser revelada na Bíblia e ser testemunhada ao coração pelo Espírito Santo. O aconselhamento cristão pretende ter essa noção, mas não está limitado ao homem interior ou exterior. Ele trabalha em todos os limites que Deus preparou e

...manifestou aos seus santos aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória; o qual nós anunciamos, advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo... (Colossenses 1.26b-28).


Wadislau Martins Gomes

sexta-feira, novembro 26, 2010

OLHANDO FOTOS DO NOTICIÁRIO COM OS ÓCULOS CRISTÃOS


Das fotos da semana no noticiário, essa dos carros incendiados no Rio de Janeiro é quente. Compete com as outras. A da miséria e da fome no planeta ameaçado de aquecimento global pelos ventos agoureiros, toca no fundo, pois ver pessoas sofrendo é coisa que dói na alma. A da briga entre muçulmanos e cristãos gera calor por causa do atrito, mas não chega a mexer com o coração, uma vez que a mídia da arena política sopra ar frio, torcendo mais para os leões do que para os cristãos. As dos animais, para aquele que prefere cheiro de cavalo a odor de gente, move ondas de um calorzinho maroto. A dos carros, essa sim, deixa a gente de cabeça quente!

Imagina só o que diriam os defensores do aborto se eu lançasse um movimento em favor do aborto de baleias! Nem imagine falar que o islamismo implica a prática da violência; isso seria lançar etanol no fogo politicamente correto! Quanto mais, dizer que a solução para a fome e a miséria é o trabalho! E o “direito” à vida, sem trabalho?

Por isso é que gostaria de dizer que não entendo a significância dos carros queimados. Gostaria, mas não posso, pois a entendo muito bem. Afinal, carro não é aquele negócio em que a gente põe mais dinheiro do que no resto da vida? A cama a que o corpo se recolhe por quatro a oito horas no dia, os sapatos que suportam esse peso todo por dez ou dozes horas diárias, a casa com a patroa e os filhos (mais duradouros, vão estar sempre por aí), e a saúde que bem ou mal a gente vai levando, tudo isso não se compara ao carro. Criança de assento e cinto é educada no carro: “Vê se não maltrata a professora, coitadinha”, “chegando a casa, não vá amolar o papai”; “fica quieto, menino, eu já falei quinhentas vezes!” Isso, sem falar daquele pronome de motorista que o pai usou contra o caminhoneiro do lado.

Na declaração prática dos direitos da humanidade, aquela que veicula na TV e nos obriga a estradas com buracos pagos, o primeiro artigo deveria ser: todo ser humano tem direito a carro para ir e vir. Mas essa é uma causa perdida; primeiro, ir e vir é liberdade do passado, agora limitada por temíveis aduanas de fronteiras e de estradas terroristas; segundo, quem é que pode comprar um carro sem uma ponta de culpa por tirar o leite da boca das crianças? E o direito do menor, lá em casa? E o direito da minoria feminina, lá em casa? E o meu direito ao sucesso, que só depende do carro que eu “visto”? Parece que tudo se resume ao direito dos “sem causa”. Sem terra vem e toma conta da minha terra. Sem teto vem, e assume o prédio dos outros. Vem sem sexo, e quer que os outros tenham plurassexualidade. Ora, eu, sem rodas, quero meu carro!

Vem daí, que o carro seja um símbolo importante, cuja queima atinge o âmago da sociedade, alcança o intestino da personalidade humana. A foto dos carros queimados fala mais alto de que labareda consumindo o lábaro nacional; diz mais sobre o povo do que toda a arenga sobre educação. Para que queimar escolas, se elas já não ensinam a alunos o mérito do saber E NEM (perdoe o trocadilho) servem de bom emprego para mestres honrados? Para que queimar terras se essas já vêm queimadas de balões, de fogos criminosos e de rápida reposição de pasto? Para que queimar gente, se todos já estamos fritos nessa panela socialista de direitos de todos sem deveres dos governantes? A coisa é mesmo queimar carros. Claro que queimar televisão seria loucura – quem é que iria “fazer a cabeça” da moçada, dos válidos existencialmente falando, dos da melhoridade (quem inventou essa jamais foi velho!), e dos sem carro? Queimar carros até que ajuda, no sentido de promover as montadoras, as revendedoras e o mercado de peças.

De toda a aparente baboseira acima, há uma só coisa que faz sentido. Alguém põe fogo na casa, e nós corremos para salvar aquilo que nos seja mais importante! Uns saem de roupa de baixo, com uma caixa de jóias ou uma pasta de investimentos na mão. Outros, mais pudicos, saem de pijamas, carregando um retrato de valor sentimental. Uns com o filho no colo, e, outros, desesperançados, com uma mão na frente e outra atrás. Cada um salva o que tem de mais caro.. A coleção de notícias ou sem notícia somente revela o que somos: sem causa! O fogo chegou aí, não só no bolso, mas no coração da humanidade, e tem jornalista pelado correndo para achar uma palavra que impressione, e tem leitor vestido apenas de óculos escuros.

Na minha mente, o sinal é claro: “Em caso de incêndio, guarde a língua”. Foi isso que disse o autor de uma matéria publicada na Bíblia, nas páginas finais (Tiago 1.26; 3.5-6). Ele, até mesmo, descreve um retrato, dizendo que a palavra revelada por Deus é como um espelho em que o homem vê a si mesmo e, se não a pratica, sai e se esquece de como era feio (Tg 1.23). Tal, diz ele, é a razão por que não entendemos a condição de estultícia e infelicidade que rasga a face da alegria de viver. Se nossa riqueza consistisse na verdadeira sabedoria, não nos perderíamos em lutas libertárias inglórias (Tg 1.1-8). Que é que significa isso de “lutas libertárias inglórias”? Primeiro, liberdade tem de ter duas referências: liberdade de e para alguma coisa, pressupondo algum tipo de jugo e algum tipo de novo tratado de objetivos e intenções. Segundo, jugo e pacto libertário dizem respeito a alguma espécie de relacionamento interpessoal que, por sua vez, pressupõe honra e acato entre as partes.

É o caso da questão da nossa Lei Áurea. Do que é que os escravos foram libertados? Deveriam ter sido libertados de toda infamante história escrita pela ganância humana. Serviço obrigatório e forçado já existia há muito tempo, mas era sempre regido por força contratual. Alguém que devia a alguém poderia pagar com trabalho. Contudo, a cobiça atrai e seduz e, uma vez consumada, gera o pecado e a morte (Tg. 1.14-15). Quando a turma do sangue bom precisou de mão de obra barata, a solução, é claro, foi a de baratear uma sociedade e seus membros individuais. Quem? Um grupo cujas características fossem tão diferentes que sua degradação não chegasse a causar tanta espécie. A fim de convencer as mentes para a aceitação e a legalização da venda e compra de seres humanos, foi tecido todo um discurso em que as palavras vinham despidas do verdadeiro significado e vendidas ao povo como a nova roupa do imperador. Lembra disso? Um alfaiate safado ia fazer uma roupa de fios de ouro para o imperador; guardando o precioso, ele inventou a idéia de uma roupa a que só veriam os inteligentes. A farsa durou só até um menino gritar: “O rei está pelado!” Pois é isso aí. Como fotos na propaganda e no noticiário, as palavras começaram a mudar as roupas de coisas e pessoas. A pele escura, dos tons marrons aos negros quase azulados, luzidia ao sol ou lua do continente selvagem, passou a ser chamada, de preta fula a negraça. Depois, ajuntaram-se ternos designativos de lugar a termos derrogatórios: cabinda, pretinho, negrinha, moleque, carapinha, benguela, crioulo, angola – tudo para formar um conceito espúrio a guisa de justificativa para o poder da ganância. A isso, Tiago apõe o princípio: “...se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo argüidos pela lei como transgressores” (2:9).

Da mesma forma, o discurso da política formou a cabeça brasileira. O socialismo não diferenciado que assola a nação pretende erradicar a fome e a miséria por meio da caneta. Bolsa família substituiu a frente de trabalho, e a frente de trabalho já havia substituído o trabalho meritoriamente remunerado. Hoje, o ganho tem de ser mais fácil, mais rápido, mais, muito mais. Eleição democrática, então, é uma palhaçada. A solução final acaba sendo a eleição do superantiherói do momento. Verdade, honradez, honestidade, conhecimento, mérito, capacidade, habilidade são palavras que vêm confundidas com as expressões da “sabedoria” popular: “a verdade é relativa”; “às vezes, a mentira é necessária”; “honra é coisa do passado”, “merece quem tem sucesso”; “capacidade mostra quem chega lá”; “habilidade é conseguir dar nó em pingo d’água”; “habilidade é esperteza”. Na educação, então, o problema cresce. Os pais são cerceados na tarefa de educar os filhos e os professores (pais sem poder pátrio), não têm condições para substituir o ensino informal e não formal do lar.

Quanto ao cristianismo, então, o quadro é o de uma absurdidade tamanha que ultrapassa as raias da razão. Qualquer um se sente no direito de criticar a sabedoria cristã, com base na “sabedoria” convencional humana (Tg 3.17-18). Se nos opomos ao relato darwiniano, da evolução das espécies, logo vem um que trata o ex-pastor e biólogo diletante como se fosse Deus. E se disséssemos que Darwin jamais teria existido? E com que base diríamos isso? Na mesma em que dizem que Deus não existe. Como alguém disse: “Mas, de Darwin, nós temos uma fotografia!” Que argumentem, então, com sucesso, a autenticidade, inerrância e autoridade do escritos de Darwin da Bretanha, e teremos um início de conversa. Quanto a Jesus da Galiléia, sem retrato, mas com palavras tais que a sabedoria não pode ser negada, a argumentação não é difícil de ser compreendida e exposta.

Olhe as obras da sabedoria humana à luz da melhor comprovação humana: carros queimados, gente queimada, chão crestado. Da boca da humanidade saem bênção e maldição, e não é bom que seja assim (Tg 3.10). De fato, Tiago prossegue (3.14-17), o que sai da boca vem do coração, e aquilo que temos visto e ouvido soa e se assemelha a obras de “inveja amargurada e sentimento faccioso”. Agora, considere as obras da sabedoria de Deus. Elas vêm do alto, como chuvas de virtudes, “pura; depois, pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento”.

A liberdade verdadeira procede de Deus. É aquela que nos liberta do círculo vicioso de comportamentos rebeldes e palavras dúbias (Tg 1.5-8) e nos capacita a perseverar nos propósitos e caminhos de Jesus Cristo. Essa não pensa que o valor da vida está naquilo que temos ou exibimos. O pobre deveria se gloriar na riqueza da dignidade e o rico, na insignificância do seu aparente poder. Um e outro deverão prestar contas a Deus. A verdadeira liberdade não pensa em termos de direitos nossos e deveres dos outros nem em termos de gotas de sabedoria humana para salvar do fogo a humanidade. Antes pensa em termos da paz que semeia o fruto da justiça para os que promovem a paz (Tg. 3.18).

Especialmente, Deus nos gerou por meio de sua palavra (Tg 1.18) e somente ela sustenta nossa vida. Sem essa noção de verdade, todas as nossas palavras serão incertas e todas as nossas análises serão enganosas. Com ela, nosso entendimento de Deus, do homem e do mundo terá o poder da palavra que vale mais do que dez mil figuras.


Wadislau M. Gomes

domingo, novembro 21, 2010

QUEM TEM MEDO DE AUGUSTUS NICODEMUS?

A pergunta: “quem tem medo de...?” é tão boa que já perdeu autoria – é de domínio público. “Medo de Virginia Woolf”, de Edward Albee; “Medo de Soljenitsin”, de Corinne Marion, e até “Medo de que”, infantil de Ruth Rocha. Diante do circo da mambembe da homofobia, só posso perguntar: por que medo do Nicodemus?

Deixe-me explicar porque o começo no meio, como quem pega o bonde andando. É que a gente comunica com palavras e palavras são sinais que apontam para uma coisa fora dela mesma. No entanto, se os sinais não forem claros, os olhos do entendimento, míopes ou vesgos, verão o que imaginam e não a coisa real que é apontada (não tenha medo da ilustração: eu mesmo preciso de óculos). A coisa é que as palavras não estão apontando para realidades, mas para imaginações, às vezes, sem nexo, e, outras, realmente desonestas. É o caso da expressão “meio ambiente”. Como é que é? No meio do ambiente? No ambiente do meio? Pois, em boa comunicação, esse tal meio é o mesmo ambiente. O uso incorreto da expressão causa medo pelo fato de que, por não compreender o sentido desse jargão redundante, poderá, até mesmo, fazer um político morrer de medo do meio ambiente (veja http://www.youtube.com/watch?v=cEMxWG_yWGw). É isso, exatamente que está ocorrendo com o termo ‘mal’ criado, homofobia. Certos medos são racionais. Eu, por exemplo, gosto de ter medo de cobra venenosa, altura sem que eu esteja protegido, e língua de estulto (esse, para deixar claro, é aquele que tira conclusões das próprias percepções e se julga sábio e entendido, sem nenhuma base fora de si mesmo).

Se quisermos ser mais exatos do que permite a elasticidade dos termos na boa comunicação, teremos de usar termos como homofilia e homofobia como antônimos, quando sequer pertencem à mesma categoria. O termo homossexual tenta apontar para algo, mas o dedo torto da língua caramuru aponta e mata um urubu. Sexo quer dizer divisão (de gênero) e homossexual seria, então, igualdade da diferença (algo como a quadratura do círculo). Alguém poderá até dizer: Mas você sabe do que eu estou falando! Não, não sei! Se você não explicar, entenderei que alguém fala bobagem. Se você quer dizer que a relação sexual entre um homem e outro homem, ou de uma mulher e outra mulher, é coisa natural, então, diga isso! Não diga que alguém homo(ousado) e, outro, homofóbico. A questão é que a coisa não se trata de medo de homo que ameaça passeatas carnavalescas nem de homofóbicos, tal como foi chamado o Rev. Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. A lei da homofobia, assim mal construída e denominada, é que deveria meter medo. Ela ameaça a unidade que existe na humanidade com respeito às diferenças sexuais, tentando estabelecer uma homogenização platônica, nitzcheniana e jungiana. Trocando em miúdos, sua terminologia engessa o entendimento de que terminando a diferenciação se estabelece a igualdade. É contra isso que nos colocamos. Não é medo. É coragem para defender a nossa liberdade de expressão.

Essa liberdade existe para todos, desde que a liberdade para todos seja resguardada. Caso contrário, não será liberdade – será a ditadura da minoria (mesmo que seja de uma maioria que se encolhe moralmente e só debate quando se encontra “em turma”. A Palavra de Deus, a Bíblia (ver 1Coríntios 6.8-11), obriga os cristãos a amar e honrar o próximo, seja ele puro ou impuro, verdadeiro adorador ou idólatra, fiel ou adúltero, heterossexual ou efeminado e masculinizada, honesto ou ladrão, sóbrio ou bêbado, bendizente ou maldizente. É certo que ela diz que aqueles que não vivem seguindo as virtudes reveladas por Deus não conseguem alcançar o entendimento nem a prática dos princípios bíblicos. As razão pelas quais a Bíblia assim afirma são: primeiro, todos os homens são criados segundo a imagem de Deus e, mesmo aqueles que não tem a vida dada por Jesus Cristo, ainda portam essa honra da qual todos decaímos e que muitos ainda rejeitam; segundo, todos decaímos da natureza em que fomos criados, e só podemos recuperar essa glória pela graça de Deus manifestada em Cristo e aceita mediante a fé, em arrependimento. Por isso, a Bíblia adverte: “Tais fostes alguns de vós”. Sim, dado que todos incorremos nesses pecados, ou, pelo menos, em alguns deles, precisamos ter misericórdia para com todas as pessoas.

Assim, não sou homofóbico (para usar o termo cunhado) porque não tenho medo do meu semelhante, e não me defendo senão quando a honra de Deus, e minha, como servo do seu reino, for atacada. Defenderei, portanto, qualquer pessoa atacada ou perseguida injustamente, qualquer que seja sua condição, dependendo somente de minha habilidade em fazê-lo – quer Nicodemus, quer homossexuais. Nessa linha, creio que o homossexual não poderá ser impedido, por mim, de viver fora do reino de Deus. Contudo, continuo reivindicando minha liberdade cristã de amá-lo e de lhe falar do que levou Jesus Cristo a morrer na cruz para pagamento de nossos pecados e para nosso perdão. Não tenho fobia de armações através da mídia, do uso de notícias velhas como se fossem novas, de mentiras contra posições cristãs respeitosas e amorosas. Só peço que pensem na liberdade cristã, de advertir sobre os problemas envolvidos na aceitação do erro como se fosse virtude, de chamar a verdade de mentira e o mal, de bem.

O respeito à pessoa continua norteando o pensamento cristão. O amor continua lançando fora as fobias. Mas a missão de prosseguir, gritando aos que julgam que um elefante seja uma corda, um tronco, um leque de abano ou uma mangueira – a essa não posso me furtar; vou às arenas apropriadas, das decisões da igreja, dos púlpitos e das ruas, para dizer: “É um elefante!”

Concluo, dizendo que o engano e o autoengano, tanto da comunicação quanto da posição homossexual ou homofóbica, erram quando não consideram a Deus em primeiro lugar. Se houver honestidade, que os que querem viver sem Deus vivam sem Deus e que os que vivem para Deus cumpram sua missão de advertir, persuadir e instruir a todo homem a respeito do que é uma nova humanidade em Cristo. Não tenham medo de Augustus Nicodemus. Não tenham medo da posição cristã. Tenham medo do engano que usa o termo incongruente de homofobia para fazer valer pensamento pluralista por meio de cortar a cabeça de quem não é plural!



Wadislau M. Gomes
---------------------------------------------
Nota: Se você não estiver inteirado dos eventos recentes que motivaram este post, visite
http://normabraga.blogspot.com/2010/11/universidade-mackenzie-em-defesa-da.html

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

AVC, FAISCA E AFOGAMENTO SOB O CONTROLE, A PRESENÇA E A AUTORIDADE DE DEUS

Ocorre-nos que a vida é a maior manifestação da graça. A Bíblia nos diz que, antes, a graça é maior que a vida!

Dia de sol quente, jogávamos conversa fora, na varanda da frente da casa. O tema das crianças competia com a fresca. De repente, quando Beth falava com Adriana sobre as crianças, as palavras lhe saíram como que enroladas na língua. Sua boca estava contorcida e o olhar, surpreso. Eu não queria estar certo quanto ao que pensei. De imediato, chamei Davi, que estava na área de trás da casa, e disse: “Olhe o rosto da mamãe!” Tendo visto, suas palavras confirmaram minha primeira impressão: “Direto para o hospital!”

Lá fomos, depressa, sem muita conversa, e, enquanto Beth apresentava sinais de melhora e de piora, nossas certezas e incertezas igualmente flutuavam. No hospital, a plantonista diagnosticou qualquer coisa como “infecção do nervo da face”. Qualquer leigo poderia ter dito isso, e até leigo saberia que não era. “Vamos para casa”, eu disse. Quem seria louco de entregar a esposa ao trato de tal diagnóstico?

Em casa, Beth apontou para um quadro pintado pela irmã da Adriana, e disse: “Andréa pintou este quadro há trinta anos." “Trinta? Então, que idade ela teria na época?” “Trinta não”, tornou Beth... “cento e cinqüenta... não... setenta e cinco... menos onze...” A partir daí, trocou refresco por panela, bolsa por sofá, e a boca ficou mais torcida.

Pequeno acidente vascular cerebral. Foram cinco dias de cuidados e exames, ultra-som da carótida, eletrocardiograma, sangue etc. Depois, mais exames, ressonância magnética, eletro encefalograma e angiografia cerebral. Os exames mostraram que Beth já havia sofrido uma isquemia anteriormente, no lado esquerdo, numa área bem no interior do cérebro. A isquemia atual, no lado direito de cérebro, não atingiu área extensa nem causou seqüelas insuperáveis. O problema é que exames recentes mostraram que, desde o AVC, houve outras diminutas ocorrências, as quais implicam continuação da busca das causas. Tudo isso aconteceu no último mês. No meio de tais correrias e sobe-e-desce emocional, recebemos muitas visitas e reunimos quase toda a família (Deborah veio com o filho mais novo; Davi, logo após a angiografia, viajou para os EEUU, a serviço).

Há cinco dias, quando nos assentamos à mesa da sala de jantar para o lanche da tarde o céu escureceu rapidamente. Raios e trovões e muita água despencaram, mas, como de costume, tocamos a vida. Quando o telefone soou, três de nós reagimos mecanicamente, fazendo menção de levantar da cadeira: “Eu atendo”, soaram três vozes. Ganhou quem levantou. Daniel foi ao telefone e, quando disse "alô", houve um estalo e tudo o que vimos foi seu corpo arremessado contra a parede e resvalando para o chão.

No meio da confusão formada, debrucei sobre ele, meu coração aos pulos sobre o dele parado. Gritei: “Ai meu Deus!” em profundo rogo. Soquei seu peito, calquei com força uma, duas, três vezes, até arrancar-lhe o grito sufocado. “Ele está movendo os olhos”, gritou Debby. Sem controle do braço e da perna esquerdos, e a mão direita rígida e retorcida, Daniel estava aturdido e não conseguia se comunicar. Márcia, ao telefone, buscava ajuda. Foi então que Daniel começou a reagir. Pouco a pouco retomou a quase normalidade.

Nos comentários posteriores, Davizinho, o filho mais velho do Daniel, de seis anos, exprimiu susto e medo. Tia Adriana e tia Debby o sossegaram: “Deus está em controle”.

Algumas das causas prováveis do AVC foram eliminadas, deixando questões sobre as causas daquilo que continua acontecendo. Beth, agora, deverá passar aos cuidados do cardiologista. Daniel foi ao médico e constatou, no coração, sinais da violência do ocorrido.

Somos, todos, meninos assustados e com medo, mas Deus nos diz que ele mesmo está em controle, presente e em autoridade, dando-nos força para caminhar com a companheira e para dar murro no peito do filho. Seria isso, tudo? Teriam passado as tempestades de dentro e de fora?

Jonathan, um ano e meio, filho da Deborah, estava à mesa, no café da manhã. Eu, desde as quatro da manhã no trabalho, havia reservado agrados de chocolate para os netos. Dei um para o pequenino. “What do you say, baby?” E ele: “More, please”. Depois disso, voltei ao escritório. As costas sentindo a tensão das semanas passadas, o trabalho se arrastava dolorido. Desci para medir a pressão arterial: alta. Encostei o corpo num sofá para fugir à preocupação da família, sem sucesso. Deborah, com Jonathan do lado, veio para perguntar: “Tudo bem, papai? Precisa de ajuda?” E a conversa vai entre tudo-bens e é-só-cansaço, quando, então, ela pede: “Um minutinho, pai, deixa-me ver o Jonathan, que ele anda sapequinha”. Onde o Jonathan? Não na sala, não no quarto, não na cozinha. Na piscina. Então, os gritos, as corridas, e minha filha, na água, põe o corpo inerte do neto na borda. “Oh Deus! Salva meu neto!” Boca-a-boca, gritos, pressão do tórax frágil, terror e oração e, de repente, a vida. Vômito e fôlego, ações prontas, o resgate encaminha o ferido e os atônitos para o hospital.

Ele está lá, agora. Luta bravamente para vencer as dificuldades respiratória e cerebral. Revezamo-nos no acompanhamento, na UTI. Neste momento, a mãe está lá, ao lado do leito, cercada de nosso apoio, mas visivelmente só. O pai, John, conseguiu aprontar a documentação para viagem, e chega amanhã. Davi conseguiu rápido transporte, da Califórnia, e veio juntar à fraqueza, a força da graça. Jonathan e Debby estão feridos. Nós estamos feridos. Beth, filhos, noras, genro e netos assumiram seus postos na porta dos céus e na roda da terra. Nosso coração pulsa no ritmo da paz de Deus, certo das dores e das glórias de Cristo.

Certamente a graça é maior que a vida!

Wadislau