Ao redor da mesa, comemorando um dia de ação de graças, dei
uma dessas tiradas miserável de espírito: “a ceia está do peru”. Antes de terminar a frase, eu já antecipei reação de misericórdia – só não esperava que o caçula estatelasse os olhos
e dissesse, de soluço: “ele falou do peru!” Sei lá em que ele pensou... mas eu,
deixei a imaginação curtir a primariedade da minha peruada. A expressão “do
peru” tem origem incerta, em referência ao país ou à ave, e é de uso dúplice,
com tons de admiração ou de ironia. Por sua vez, o sentido do Dia de Ação de
Graças, originado na tradição americana dos peregrinos, ação de graças,
nativos, peru etc., aqui na terrinha tem cheiro e gosto de influência bradesca
e de esquema comercial – mas, vá lá, se de alguma forma Deus é louvado.
Cá para nós, mais do que bom sentimento ou adorno pessoal, gratidão
significa conformação com a vontade de Deus. De fato, ela é compreendida e
exercitada na deliciosa e diligente comunhão com Deus e manifestada no reflexo
da glória de Cristo por meio dos afetos do coração e da beleza do caráter. A
gratidão, em termos bíblicos, é o exercício da fé gerada e motivada mediante o
testemunho interno do Espírito Santo e baseada e praticada mediante a bênção da
graça de Deus. Em suma, essa gratidão brota do tronco da fidelidade de Deus e
frutifica nos ramos da nossa decorrente fidelidade. Foi assim que Paulo tratou
o tema:
Orai
sem cessar. Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo
Jesus para convosco. Não apagueis o Espírito. Não desprezeis as profecias;
julgai todas as coisas, retende o que é bom; abstende-vos de toda forma de mal.
O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo
sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo. Fiel é o que vos chama, o qual também o fará (1Tessalonicenses 5.17-24).
Do mesmo modo, a gratidão que provém da graça mediante a fé
é o vínculo vital da criatura com o Criador e a virtude formadora do caráter
cristão. Por meio dela a pessoa conhece a divindade de Deus, a quem não vê, mas
que é revelada na Escritura e em Cristo, e reconhece seu controle, presença e
autoridade sobre todas as obras de suas mãos. Tais conhecimento e compreensão
respondem às questões essenciais do coração humano: quem somos, de onde viemos
e para onde vamos. Assim, fomos criados para espelhar a glória de Deus, estamos
aqui para usufruir toda sorte de bênção advinda dessa glória, e vamos para a
realização da glorificação final.
Quando compreendido em gratidão e a despeito de possuirmos “este
tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de
nós”, a presença do reflexo da “glória de Deus, na face de Cristo” (cf.
2Coríntios 4.6-7) estabelece a identidade e o desenvolvimento da personalidade
do salvo. Para os não salvos, e para os salvos que os modelam, a ausência do
reflexo da glória de Deus e da gratidão torna-os faltos em seus pensamentos e
insensatos em seus corações – perdem a prórpia identidade! Foi assim também que
Paulo o colocou:
Porque
os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua
própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo
percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso,
indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como
Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios
raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por
sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em
semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e
répteis (Romanos 1.20-23).
Portanto, gratidão é mais do que “uma coisa do peru”.
Gratidão é habitar em Deus mediante a comunhão pessoal e a habitação da sua
Palavra em nós de maneira que nossa expressão verbal para com ele e para com
seus filhos e nossos irmãos em Cristo seja rica de graça, e nossa ação, rica da
operosidade da fé (cf. Colossenses 3.18-17). Gratidão é uma ação do Espírito de
Deus no nosso espírito, inspiração de graça, respiração da alma, motivação de
vida. Foi assim que o salmista praticou e cantou a gratidão ao Senhor:
Bom
é render graças ao Senhor e cantar louvores ao teu nome, ó Altíssimo, anunciar
de manhã a tua misericórdia e, durante as noites, a tua fidelidade (...) Pois
me alegraste, Senhor, com os teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos.
Quão grandes, Senhor, são as tuas obras! Os teus pensamentos, que profundos! O
inepto não compreende, e o estulto não percebe isto (...) O justo florescerá
como a palmeira, crescerá como o cedro no Líbano. Plantados na Casa do Senhor,
florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice darão ainda frutos, serão
cheios de seiva e de verdor, para anunciar que o Senhor é reto (cf. Salmos
92.1-15).
Wadislau Martins Gomes
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