Antes, o menino era pego
com o dedo no nariz e, pronto, tirava os olhos da menina e punha-o debaixo
da cadeira juntamente com outras vergonhas. Hoje, é possível que ele mostre a
caca. Antes, caráter e clareza eram esteios da vida de um casal; se uma falta
de caráter levava o marido a mentir sobre o motivo do atraso, por respeito aos
sentimentos da esposa, ela sofria, mas relevava. Hoje, ela já não liga para a
mentira nem para onde ele esteve nem para o atraso. O que é que está havendo
com a gente?
Qualquer um que tenha um pouco de clareza mental
desconfia, até mesmo, dos motivos por trás da maioria das propagandas da TV e
da net. Claro que deve haver algum grau de honestidade no meio do ruído do
comércio, mas a regra é desconfiar primeiro. Você acredita na ocular miraculosa
que bate todas as lentes mais acreditadas? Nas notícias que não adiantam a que
vêm e querem que você clique e pague pra ver? No conhecimento e sabedoria de
cabos eleitorais bolsonaros ou lulistas ou de revolucionários ameaçando
intervenções destras e canhotas?
A coisa ainda fica mais pesada quando precisamos falar
que nem todo político é safado a fim de dizer que a política governamental está
safada. O certo é que, “se gritar: pega ladrão! não fica um, meu irmão” – nem
mesmo quem cantou o verso. Quem não está com a espada no pescoço por ter sido
pego com dinheiro na mala ou na cueca, também não aprova projetos que promovam
lavagem a jato das coisas morais e éticas. Na área da justiça e do direito, o
bicho pega feio. O que é que um ministro da injustiça tem que consegue fazer e
acontecer?
E nós, onde ficamos? De acordo com a Palavra de Deus: A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós, o corar de vergonha ... a nós
pertence o corar de vergonha, aos nossos reis, aos nossos príncipes e aos
nossos pais, porque temos pecado contra ti (Dn 9.7-8). É isso aí,
envergonhados da nossa falha de caráter e de clareza espiritual, que nos levam
a esperar em redenções morais políticas, que não procedem de toda sorte de
bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo (Ef 1.3). É por causa de
nossas ações erradas ou de nossas omissões suspeitas que o mundo não reconhece
o direito e a justiça do evangelho que a igreja deveria pregar e viver.
Deveríamos ser exemplos de caráter santo e de desempenho social amoroso. Ou, no
mínimo, deveríamos estar sob perseguição.
Tenho
pedido a Deus que levante pessoas estudiosas do direito para ensinar e motivar
as nossas igrejas a cumprirem a parte da missão de Deus que trata da cidadania
(cf. O Sermão do Monte, Mt caps. 5
a 7). Poucos são os advogados, nas igrejas brasileiras,
que conhecem os fundamentos bíblicos da lei e da justiça aplicados ao direito
exercido em nossa terra. Isso se dá, em parte, por causa da quase ausência de
boa literatura a esse respeito. Há algumas publicações recentes, mas muito do
que existe, são tentativas de práticas jurídicas ou justificativas de opiniões
de um e outro dos grandes sistemas do direito “secular”, utilizando textos
bíblicos isolados.
A
Bíblia, sem sombra de dúvida, é um livro de lei, de justiça, de direito privado
e público, e daí em diante — tratando todos esses sub-itens a partir de um
ponto de vista teológico. Será bom lembrar que muitos dos reformadores eram
acadêmicos de direito, entre eles Lutero e Calvino. De passagem, menciono os
muitos escritos de Kuyper e de Dooyeveerd, os quais serão indispensáveis ao
pesquisador. Além desses, entre outros de igual importância, há livros que
mostram aspectos práticos do direito bíblico: Law and the Bible, Eds. Robert
Cochram Jr and David VanDrunen (www.IVPress.com/books), The Ten Commandments,
Thomas Watson (1692, diversas editoras); The Ten Commandments: Manual for the
Christian Life, de J. Douma (P&R Publishing); A lei da perfeita liberdade,
Michael Horton (Editora Cultura Cristã, 2000), e daí em diante.
O
que segue é uma tentativa de provocar um gosto pelo estudo do assunto e pela
educação das nossas igrejas no exercício de nossa dupla cidadania celestial e
terreal.
Aprecio
muito os livros seminais. Não livros simplistas, mas sementes férteis que
plantadas em solo arroteado e bom, crescem a cem, a mil por dez. Como disse
David Powlison, não se trata da simplicidade aquém, mas além da complexidade. O
The Law, de Frédéric Bastiat, é um desse livros (Auburn, AL, USA: Ludwig von
Mises Institute, 1850; 145 pp). Já nas últimas cinquenta páginas, Bastiat repete
perguntas e respostas que procurou levantar na mente do leitor: “O que é a lei?
O que ela deveria ser? Onde, de fato, termina a prerrogativa do legislador?” A
sua resposta é pronta: “A lei é a força comum organizada para prevenir a
injustiça – em suma, Lei é Justiça” (p. 115).
Se
o leitor for criativo, lembrar-se-á de que a lei escrita na Palavra de Deus foi
dada para servir de consciência ao homem decaído de seu estado original. A
questão é que, antes do pecado, nossos primeiros pais acatavam a lei
preveniente e evidente na criação. Depois da Queda, sem o temor de Deus no
coração e diante dos olhos, veio a lei de Deus a fim de calar qualquer
justificativa humana e colocar a todos sob condenação – as obras da lei a
ninguém justificam, antes, fornecem a consciência do pecado.
A obra redentiva
da lei apontou e sempre aponta para o Redentor, o Filho de Deus que no devido
tempo se encarnou para cumprir a lei fazendo-se justiça em nosso lugar. Toda a
humanidade está sob o juízo da lei de Deus, quer pessoas regeneradas quer
naturais, mostrando “a obra da lei escrita em seus corações, testificando
juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer
defendendo-os” (Rm 2,15; cf. 2.11-14; 3.18-22; 1Co 1.30).
A
missão da lei dos homens, como diz Bastiat, não é a de “regular nossas
consciências, nossa vontade, nossa educação, nossos sentimentos, nossos
trabalhos, nossos intercâmbios, nossos dons, e nossas diversões” (p. 116). Essa
é a função da lei de Deus, na Palavra escrita e no testemunho interno do
Espírito, assegurando ao regenerado a justiça de Cristo e suas bênçãos, e ao
não regenerado, a consciência e a final consequência do pecado. Em relação à
humanidade em geral, a missão da lei humana é a de “prevenir que os direitos de
uma pessoa, acima descritos, sofram interferência por parte de outras”.
A
lei garante tais direitos por meio do exercício de sua força, isto é a justiça.
“Como cada indivíduo tem o direito ao recurso dessa força somente em caso de
defesa pessoal, assim também a força coletiva, a qual é a união de forças
individuais, não pode ser racionalmente usada para qualquer outro fim” (p.
116). A lei somente será justa se for a organização dos direitos individuais
que existirem diante da lei. Pois a lei é justiça. Daí, Bastiat depreende o que
deveria estar em nosso coração e evidente aos nossos olhos: se a lei for usada
para oprimir o povo seja por meio do controle da consciência do indivíduo (em
termos de sua linguagem, educação, associações e identidade social, de gênero
etc.) seja por meio do despojo de sua propriedade, mesmo com alegada motivação
filantrópica – nesses casos a justiça deverá ser reclamada por parte de uma
união de forças individuais.
O
ideal de justiça, diz Bastiat, não “pode ser mais claro e mais simples, mais
perfeitamente definido e unido, ou mais visível a cada olho; pois justiça é uma
dada quantidade, imutável e constante, que não admite aumento ou diminuição.”
Ideal, eu digo, porque a justiça não existirá em um mundo decaído, sendo
atingida única e exclusivamente em Cristo por meio da ação do seu Espírito. “A
partir daí, faça a lei humana ser algo religioso, fraternal, equalizador,
industrial, literário, ou artístico, e você estará sobre terreno desconhecido,
uma utopia forçada, ou, pior, uma multidão de utopias em contendas para obter a
posse da lei a fim de impor [sua versão de justiça] sobre” o indivíduo.
Como
é que poderemos impor limites à consciência? Mudar identidade de gênero?
Fornecer educação igualitária a pessoas com diferentes dons e motivos?
Administrar o labor criativo e recompensador? Como operar justiça a uns sem
fazer injustiça a outros? Pessoalmente, sei que a perfeição não existirá aqui e
agora. O mundo jaz no maligno e seus caminhos são tenebrosos e mortais. Há,
entretanto, uma esperança baseada na promessa divina. Deus concedeu os Dez
Mandamentos a um povo que, ainda que carente da habitação do Espírito, tinha a
promessa dessa graça para a própria política como povo organizado e para o cumprimento
de sua missão política externa.
Ninguém
jamais cumpriu a Lei senão o Filho do Homem, Jesus. Ele é a nossa justiça.
Assim, o indivíduo regenerado, enxertado na Videira, recebe dele a vocação e os
dons para a própria vida e para a missão de Deus no mundo. Em uma aplicação bem
prática, o apóstolo Paulo discorre sobre como, individualmente, ele lidou com
os seus valores e motivos internos, e com suas posses externas, à luz do
conhecimento e da comunhão com Cristo:
Mas
o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E, na verdade, tenho
também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo
Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as
considero como escória, para que possa ganhar a Cristo.
Estas palavras, Paulo
escreveu a uma igreja, falando sobre a vida dos membros na unidade da fé e
sobre a missão da igreja no mundo. Ele continua:
E
seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela
fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé; para conhecê-lo, e à
virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito
conforme a sua morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição
dentre os mortos.
Sua motivação não era mais
uma de reivindicação de direitos, mas de cessão dos próprios direitos em função
das virtudes de Cristo a serem vividas e proclamadas. É assim que Paulo,
considerando as fraquezas humanas e os poderes de Cristo, convoca-nos e
anima-nos a viver do mesmo modo:
Irmãos,
quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que,
esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante
de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo
Jesus. Por isso todos quantos já somos perfeitos, sintamos isto mesmo; e, se
sentis alguma coisa de outra maneira, também Deus vo-lo revelará. Mas, naquilo
a que já chegamos, andemos segundo a mesma regra, e sintamos o mesmo (Fp
3.7-16).
Wadislau Martins Gomes