Cena do filme The Physician |
Com minha
leitura mais recente, fiquei pensando no que faz tantos médicos tornarem-se exímios
escritores. Certamente, as qualidades necessárias para um clínico – observação
precisa, ler nas entrelinhas do que o paciente diz e do que não diz, observar o
corpo e os seus sinais silentes, muitas vezes, fisicamente invisíveis – dão
respaldo para um escritor de primeira grandeza. Outra característica do bom
médico que vem a ser melhor escritor, também, é o hábito da pesquisa constante,
renovada sob novas perspectivas. Ele não se contenta com o que aprendeu na
faculdade de medicina, mas é ávido por aprender sempre, sem superficialidade,
ainda que consiga ver “de cara” aquilo que vai pesquisar “mais a fundo”. Vejo
isso em minha amiga jovem neurologista, Dra. Claudia, que irradia profunda
sensibilidade juntamente a um experiente conhecimento – enquanto, humildemente, diz:
“Não sei. Vamos pesquisar...”
Lembro-me
de ter visto a mesma característica em velhos médicos missionários que fundaram
hospitais pioneiros e tornaram-se referências em suas cidades – Dr. Gordon, em
Rio Verde, e Dr. Fanstone, em Anápolis. Seu conhecimento ia muito além da
medicina – foram engenheiros arquitetos, administradores, músicos, e pregadores
da Palavra de Deus, cuidando do físico e alma das pessoas, porque as viam como
uma totalidade.
Na
literatura, muitos dos livros que mais me empolgaram foram escritos por
médicos: os diversos livros de Oliver Sacks (O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, Alucinações musicais),
Raízes, de Alex Hailey, Cutting for Stone, de Abraham Verghese,
a ficção científica de Michael Crichton, os livros históricos de diversos
períodos de Noah Gordon (especialmente O
último judeu e O físico), e até
mesmo nosso Dráuzio Varela, que consegue fazer suas biografias de prisioneiros
e carcereiros, de enfermos e sarados, leituras fascinantes. No terreno bíblico,
há o Dr. Lucas, companheiro e biógrafo do apóstolo Paulo e de todos os
primeiros momentos da Igreja, até autores cristãos modernos, como Henry Brand,
Roger Hurding e D. Martyn Lloyd-Jones.
Não sou
aficionada ao cinema, e quando meu filho emprestou-me o livro Lições de liderança no cinema, de Pablo
Gonzalez Blasco, não imaginava que seria uma experiência tão enternecedora,
educativa e provocante. Como educadora cristã que escreve, pensei que essas
lições de liderança resultariam em algumas “dicas” para palestras ou escritos
futuros. O autor é médico com pós doutorado em medicina de família, e autor de
diversas obras sobre a humanização da medicina. Cristã que sou, pensei que a
sua ênfase no humanismo e constantes citações do papa Bento e de santos católicos
romanos de diversas épocas não coadunaria com minha visão da soberania de Deus
e de cristianismo bíblico segundo nosso enfoque. Mas suas constantes
referências ao pensamento e doutrinas cristãs de Agostinho e C. S. Lewis
derrubaram os muros mentais que eu tendo a erigir, e eu quis aprender com Dr.
Pablo, que afirma “o amor pela verdade é o substrato necessário para todas as
reflexões sobre liderança... o amor pela verdade nos configura e
consequentemente nos atinge também o relacionamento com os outros” (p. 24).
Lembra a declaração de Jesus em João 8.32: “E conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará” e sua suma relacional em João 13.35 e João 15.14.
O livro é prenhe de filosofia
prática. “Sim, é possível transformar-se, tornar-se melhor, buscar caminhos
novos para a vida, sem aceitar a idade como desculpa para o conformismo” (p.
156), lembra-me Romanos 12.2: “E não vos conformeis com este século, mas
transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja
a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.
Como um professor/escritor poderia descartar
este livro que diz: “A pedagogia bíblica, com suas histórias e parábolas, nos
ensina que a gratidão é atitude rara, que deve ser ensinada como um hábito a
incorporar desde a mais terna infância. Lá encontramos um exemplo gráfico de um
grupo de leprosos curados milagrosamente; apenas um voltou para agradecer?”
(p.180)
“A adaptação da maturidade requer
entendimento dessa realidade e passar por cima das ingratidões, lombadas naturais
no curso da vida, sem queixar-se, sem desistir. É o momento de lembrar os
motivos que nos levam a agir, e viver, de verdade, com a convicção de que
ninguém nos deve nada, porque nunca nos passamos a conta: o nosso balanço
contável situa-se em outro nível”. A citação seguinte parece tirada do velho
apóstolo Paulo no capitulo 4 de Filipenses: “aprender a envelhecer sorrindo
(Alegrai-vos no Senhor, outra vez digo: Alegrai-vos” (4.4), um sorriso que
resume a paz, a adaptação, a atitude aberta que convive com qualquer
mudança”(p. 181) “porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação.
Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as
circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de
abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.11-13).
Referido-se ao filme da história de
Nelson Mandela, Gonzalez Blasco diz: “Invictus
aponta para uma liderança que é cuidado fino, atenção pessoal, verdadeiro coaching – palavra que logo cairá também
no desgaste conceitual pois o nosso mundo não perdoa. O verdadeiro líder não é
um gestor macro, mas alguém que olha com carinho no micro, na pessoa, em cada
um, no interior. Não lhe interessam estatísticas nem apenas resultados no
conjunto, embora saiba que deverá prestar contas, porque o mundo é assim
avaliado. Vai atrás de cada um, e tira dele o melhor, e o mundo melhora assim,
mais do que com políticas globais...” (p. 221,22). Lembro da parábola das noventa
e nove ovelhas no aprisco e o Bom Pastor que vai atrás da uma ovelha desgarrada
e perdida (Mt 15.24; Mt 18.12).
Ao ler os comentários
cinematográficos, que o Dr. Pablo aplica tão propriamente à medicina da família
e geriatria, lembro do dito, (vantiliano, schaefferiano) que “toda verdade é
verdade de Deus”, julgo criticamente as suas posições humanistas, mas louvo a sua visão de servir o ser humano: “Responder com generosidade a situações
alheias ... é porta que descortina horizontes formidáveis, perspectiva que
coloca em jogo os talentos que Deus nos deu, e os faz render. Servir é sempre
caminho de crescimento. E todos têm jeito para isso; basta querer” (p. 233).
Concluo com o que diz Dr. Pablo
sobre perdão: “Compreender, desculpar e perdoar é possível mediante o amor de
Deus e a nossa humilhação. Quer dizer: para perdoar de verdade, sem guardar
contabilidade, é preciso esmagar o ego e pedir emprestado o amor divino capaz
de cicatrizar as ofensas” (p. 237)
Não tenho a habilidade, precisão e
cultura de um médico familiar que escreve com beleza sobre a graça de aprender
com cinema. Longe de mim achar que escritos de uma would-be writer pecadora, a quem falta conhecimento apesar da maturidade,
tenha escritos para a eternidade. Mas quero ter a humildade e sabedoria de
outro exímio escritor e médico, que afirmou em seu prólogo:
“Visto
que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre
nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram
deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu
bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por
escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena
certeza das verdades em que foste instruído” (Lucas 1.1-4).
– escrevendo sempre narração
coordenada, depois de acurada investigação desde sua origem, dar por escrito uma
exposição em ordem, com a finalidade de que meu leitor tenha plena certeza da
verdade.
Elizabeth
Gomes