Paulo repreendeu a Pedro, face
a face, quando este se fez reprovável por abraçar a heresia dos judaizantes. Com
coragem, o fez sem estabelecer juízo sobre sua salvação. Com relação a Himeneu
e Alexandre, blasfemos, Paulo os entregou a Satanás, certamente segundo o
preceito de 1Co 5.5, de preservação da alma. Ninguém poderá proferir juízo
sobre a salvação de quem professa a Cristo como Senhor e Salvador, conforme a
Escritura – tal como dito por Jesus, na parábola do joio e do trigo (Mt
13.18-27). Nesse sentido, o juízo será herético.
A Nota Pública em nada
abandona posições nem enseja alianças nem pede que não haja debates, mas
concorda em rogar que cessem as contendas carnais. Eu afirmo minha fidelidade à
Bíblia e entendo que a Reforma protestante tem o calvinismo como companheiro
dessa fidelidade. Não aceito o arminianismo, mas não me atrevo a proferir juízo
sobre a salvação de seus adeptos. Da mesma forma, não aceito a heresia do falso
testemunho e das discussões carnais que negam a fidelidade a Cristo e à
Escritura.
Repito, aqui, editado, uma
publicação de 2010.
Depois de um sonho em que eu
me defendia de um intruso em minha casa, fiquei com aquela peça do Chico
Buarque na cabeça: “Hoje eu sonhei contigo e caí da cama..." (“Não sonho
mais”). Mais tarde, como o cheiro da feijoada do João Ratão em o Casamento da
Dona Baratinha, o som foi entrando pelos meus ouvidos, tomou conta da atitude,
tomou conta da mente, tomou conta de tudo. Acordei com esse sentimento
enroscado na idéia.. Veja só! Eu velho, a esta altura já devendo ser bom de
casa e de rua, ainda sonho com sentimentos de injustiças covardes, que só me
pegam quando estou dormindo. Essa é de matar, não é?
Exatamente porque é de matar,
é que temos de lidar com a ira pecaminosa. É isso aí: Ira mesmo! Certo que há
um tipo de ira que tem o seu lugar. A ira está para a dor assim como a
misericórdia está para o amor. Trocando em miúdos, a ira é boa e louvável
enquanto é um sentimento de que alguma coisa está errada (“Irai-vos e não
pequeis” – o negócio é não pecar, pois senão, é o diabo; cf. Ef 4.26-27). É
como a dor, esse incômodo que impede que eu vá além dos meus limites e me fira,
mas que, quando rompe seu próprio limiar, dói mais do que dente do siso
encavalado. Quando o diabo pega, a ira vira amargura e caruncha a cabeça,
ressentida, como cisco no olho que mesmo depois de tirado ainda raspa. A
solução cristã é sobrepor o desafeto com a redenção que há em Cristo Jesus. Há
uns dois ou três versículos, na Bíblia, que, se você se lembrar deles na hora
agá, até ajuda: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio
de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1); “Segui a paz com todos e a
santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14); e “amai os vossos
inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44). A questão é como fazer para
amar aquelas pessoas que claramente não permitem ser amadas? Como amar meu
inimigo? Parece pesadelo! Mas, não é para desesperar. Se Deus despertou a mim,
irado pecador, ele poderá acordar a qualquer um. E ele quer. Por isso mesmo,
juntamente com suas promessas, ele fornece mandamentos; aquelas motivam o
coração e estes nos capacitam a mudar o comportamento.
Pense um pouco comigo sobre
dois mandamentos do Decálogo (usei o termo, agora, só para ver se você não
estava cochilando – são os Dez Mandamentos, ô): o sexto mandamento, “Não
matarás”, e o oitavo, “Não furtarás” (Dt 5. 17, 19). O primeiro é mais simples.
Entendendo corretamente as ordens bíblicas aparentemente antagônicas, como de
não matar e de matar, o bom intérprete conclui que tem mais coisa aí. Com
efeito, o termo hebraico usado no texto é ratsah,
que tem o sentido de “tomar nas mãos, voluntariamente, o direito de tirar a
vida ao semelhante”, mais do que o sentido de homicídio acidental ou de
legítima defesa (pessoal ou institucional, como em caso de guerra ou de pena
capital). Ora, esse cara que de quem gratuitamente possa não gostar, ou que me
ataca, é meu semelhante, criado à imagem de Deus, a quem não tenho o direito de
roubar a vida. A promessa do Senhor é que a vida procede de sua graça, e que o
respeito à vida do outro pressupõe o valor da minha própria vida. Não poderei
matar aquele a quem Deus criou assim como não poderei matar a imagem de Deus
plasmada em suas criaturas. Não poderei matar seu caráter por meio do ódio ou
da maledicência (“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é
mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a
Deus, a quem não vê”, 1Jo 4.20; “Todo aquele que odeia a seu irmão é
assassino”, 1Jo 3.15; “todo aquele que sem motivo se irar contra seu irmão estará
sujeito a julgamento”, Mt 5.22).
O segundo, o oitavo
mandamento, é um pouco mais complicado. “Não furtarás”, não diz respeito à
simples apropriação indébita (ainda que esse crime seja igualmente condenado
por Deus), mas está mais próximo do sentido de sequestro. A melhor ilustração
disso é o caso de José, sequestrado e vendido por seus irmãos em função de
lucro pessoal. O Deus que nos libertou da escravidão do ambiente decaído em que
vivemos, da esfera de morte à espreita dentro de casa e nas ruas, e que nos
remiu do cativeiro interior que nos devora de desejos de prazer e de poder, ele
mesmo não quer que o homem criado para a liberdade se torne escravo de homens.
Como é que eu, na mesma terra e sujeito aos mesmos troncos e barrancos do
caminho, posso pensar em controlar o homem que Deus criou para sujeitar,
cultivar e guardar as suas obras? Quantas vezes, eu sequestro o bom nome de
alguém e só devolvo se o resgate for bastante para elevar meu nome! Isso, e
mais o fato de que me deixo levar pela competição para ver quem é mais desgraçado.
Há algo mais importante do que
toda a importância que essas coisas têm. É o fato de que as razões de Deus para
as promessas que mexem com o homem interior e os mandamentos que capacitam a
operar no ambiente externo têm maior significância: Deus é gracioso e deseja
que o nosso relacionamento com ele seja de íntimo conhecimento da verdade em
amor. Seus mandamentos, ainda que contenham forte ênfase moral, não são
legalistas, mas éticos; e suas promessas não são vazias, mas plenas de
cumprimento. É isso que está escrito: “Nisto conhecemos que amamos os filhos de
Deus: quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos” (1Jo 5.2); e
Visto como, pelo seu divino
poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade,
pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e
virtude, pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes
promessas, para que por elas vos torneis co-participantes da natureza divina,
livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo (2Pedro 1.3-4).
Exatamente aqui é que está a
casa de marimbondos. Com tais princípios motivadores por dentro e tais
disposições por fora, como é que fica nossa vida em um mundo não apenas decaído
por causa do pecado, mas ainda averso às virtudes cristãs, inimigo de Deus e
dos homens (pois a advertência vale para gregos e troianos: “Se vós, porém, vos
mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos”,
Gl 5.15)? Como crer nas promessas e obedecer aos mandamentos de Deus, com tanto
zumbido de ameaças por dentro e por fora?
Por um lado, há a apatia
medrosa dos cristãos que deixam de exercer o seu papel profético e se acomodam
à faina dos vespeiros à cata do mel de flores murchas que o século planta em
cada esquina. Na poética bíblica, não experimentam a vida que recebemos do amor
e da misericórdia de Deus:
Ele vos deu vida, estando vós
mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o
curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora
atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos
outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e
dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais
(Ef 2.1-3).
Por outro, há a dura realidade
de que não é por que eu seja paranóico que não tenha gente me perseguindo.
Também está escrito, nas palavras de Jesus: “No mundo, passais por aflições;
mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).
Como viver com um barulho
desses? Olha a realidade prática de confiar ou não nas promessas de Deus e de
obedecer ou não aos seus mandamentos. “Não matarás.” Assassinato é tão comum
que ninguém mais liga. Não é que não ligue de ser assassinado. Afinal, o que é
que você prefere: ser pobre e doente ou rico e com saúde? O caso é que picada
de marimbondo no dedo dos outros tem gosto de mel. Furto de honra e assassinato
de caráter corre à solta.Um mata o corpo com uma espada, outro com pó, outro
ainda com idéias – contra Deus, pretextando piedade; outros mais, com a língua
falada ou escrita. Onde fica a beleza pés dos que anunciam as boas novas? A
vaidade do leque de pavão, em vez de servir de atrativo, apenas exibe a feiúra
dos pés. A esperança vai cedendo lugar ao cinismo e, quando percebemos, já
fizemos tanta cera em termos de quem somos e do que fazemos que só nos restará
exibir o ferrão e entrar na festa.
“Não furtarás”. Grande parte
das vezes, deixamo-nos sequestrar ou somos seqüestrados, e nos quedamos reféns
de atos ou causas que nada têm a ver com a vida justa e boa. A coisa piora
quando isso vira “virtude” do jogo eclesiástico. Hoje, sem projeto de sucesso
pessoal ninguém vence, nem nas câmaras nem nos átrios; e a moçada segue os
passos dos bem sucedidos, cantando: “Tropeça aqui, oi, cai acolá, mas depressa
levanta e começa a cantar...” Somos sequestrados por figuras carismáticas sem
caráter, líderes astutos, liderados matreiros, mentirosos anônimos, reveladores
do pecado alheio, críticos de porta de igreja e tanto louvor mais. De
arrependimento e santidade, pouco se fala. Uns caem e não se levantam, outros
julgam e não querem ser julgados; a verdade é chamada de mentira e, a mentira,
de verdade – e nós fingimos que ninguém falou conosco. Olha que tem filósofo
andando com lanterna acesa à procura de honestidade. Eu sei, eu sei que sempre
foi assim. Mas entre cristãos? Na igreja? Em que é que o mundo, que tem o
direito de nos criticar (“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se
tiverdes amor uns aos outros”, Jo 13.35), deverá crer: no testemunho de nossas
palavras ou no de nossos atos? Certamente crerá na incongruência! Se os
assassinatos de caráter e os sequestros da alma não derem uma parada, como é
que prosseguiremos, convidando gente para vir a Cristo, a cabeça da igreja? O
que é que convidamos o mundo para ver na igreja: nossa boca, nossas mãos,
nossos pés e nossos olhos? Não se engane, o que falamos, fazemos, aonde vamos e
o que consideramos – tudo procede das fontes do coração (cf. Pv 4.10-27).
Agora, neste início de ano, eu
faço um voto: prometo que não sonho mais essas coisas; não irei mais para a
cama depois de comer iras amargas e indigestas; vou sonhar com você sem cair da
cama; sonhos bons, coloridos. E quando em meus sonhos eu for visitar os seus,
irei desarmando, munido apenas do resgate que Jesus pagou ao Pai para que
fôssemos um nele e com ele. Bênçãos.
Wadislau Martins Gomes