O
conselheiro bíblico, isto é, todo crente maduro e especialmente um pastor, deverá
se alertar para o fato de que os processos não físicos têm a mesma realidade
dos processos físicos nos quais se finalizam. Isto, para não incorrer em uma
falha muito comum entre profissionais e paraprofissionais das áreas de ajuda
humana. Muitos deles, desejando estabelecer uma posição “científica” para o
exercício da psicologia, sociologia, serviços sociais, e, até mesmo, medicina e
outras especialidades, são pegos expressando pareceres que negam a própria
reivindicação. Isto, por, pelo menos, duas razões. Primeiro não levam em conta
que ciência, como disciplina, implica em um método de estudo – observação,
experiência, comprovação, repetição e formulação – e não em uma alquímica pedra
de toque que transforme crenças perspectivas em coisa provada. Segundo ,
permitem que uma noção materialista generalizada oriente suas cosmovisões, até
mesmo quando se declaram “espiritualistas”. Para muito, o corpo seria coisa
objetiva sujeita a leis determináveis e controláveis, e, a psique, algo
subjetivo meio constatável e parcialmente controlável. Alguma coisa assim como
os conceitos de realidade e virtualidade da moderna informática. Testemunhei,
até mesmo, uma ocasião em que um profissional da área da saúde, depois de ter
conversado com um paciente diagnosticado como portador de miastenia, voltou-se de
modo bem paternalista para seus visitantes, com ar astuto e dedo às rodas junto
da cabeça: “É psicológico”. (Eu deveria ter falado: Ah! Graças a Deus! Não é
real. É autoengano, é fingimento! Viva!) O conselheiro cristão, pelo contrário,
qualquer que seja a área da ajuda – pastoral, psicológica, social, e outras –
deverá se conscientizar da realidade dos movimentos internos e sua interagência
com os movimentos externos da pessoa.
Tais diferenciação e relação
dos processos matérias e imateriais do atoestrutura humano requerem que o conselheiro
cristão tenha em mente uma teoria bíblica
bem formada para a prática do
aconselhamento. Posto que os pensamentos do presente século – há quem tenha
dúvidas sobre o uso do termo “secular” no sentido de pensamento anticristão,
mas a expressão é usada na Bíblia com bastante precisão; cf. Rm 12.2; 1 Co
1.20; 2.6,8; 3.18; 2Co 4.4; 2Tm 4.10 – repousam sobre a ideia de causas e
consequências em um universo aberto, ao acaso e no vazio, será preciso que o conselheiro
refaça seu pensamento em termos
bíblico-teológicos. Quais
são as causas das depressões, das compulsões, das fobias? Para responder a
estas e outra questões pertinentes, os comentários de Ed Welch são
suficientemente esclarecedores. Ele diz, sobre as implicação da intergência alma/corpo, por exemplo, que
“a visão bíblica é específica quanto a que saúde e vida, e doença e morte, são,
em última instância, resultado de escolhas morais, e não de estresse”. Diz
também que o pecado, a estultícia (vida sem a sabedoria de Deus, baseada em
“sabedoria” privada), e a culpa podem conduzir à enfermidade, e, por outro
lado, a retidão, a paz e a alegria do Senhor na vida cristã podem conduzir à
saúde. Nenhuma dessas condições, porém, asseguram uma relação de causa e
consequência. Esta falha de pensamento ocorre em muitas das propostas de
“cursos” para vida cristã, pois, na tentativa de elaborar um sistema de
progresso de santificação, elas acabam caindo no pecado do legalismo –
“apertando este botão, obtém esta bênção”. Existe, sim, a possibilidade destas
conexões, pois esta é a intenção da promessa e da exortação, mas Deus também
usa de sabedoria conforme lhe apraz, usando graça tanto ao não levar
imediatamente em conta o pecado quanto ao dispor a provação. Sobre isso a
Bíblia diz: “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e
não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário,
juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais
suportar” (1Co 10.13), e “É para disciplina que perseverais (Deus vos trata
como filhos); pois que filho há que o pai não corrige?” (Hb 12.7).
A Escritura inteira (a)
fornece diretrizes baseadas no caráter normativo da revelação, (b) aplica a Palavra
de Deus às diversas situações da vida, e (c) dá atenção aos sentimentos
humanos. O Livro dos Salmos, atentando especialmente ao aspecto existencial da
vida humana, abre um campo de visão para a nossa apreciação da relação
alma/corpo. Veja o caso do rei Davi, no salmo oração composto “quando o profeta
Natã veio ter com ele, depois de haver ele possuído Bate-Seba” (Sl 51.1; cf.
vv. 1-19). O rei exibe sua compreensão do conhecimento de Deus e, baseado nele,
do conhecimento de si mesmo. Ele se posta em adoração diante de Deus, sabedor
de que em sua glória está a essência do seu próprio ser. Deus é bom – ele diz –
seu coração é sensível ao coração humano, sua graça compreende justiça e amor,
sempre pleno de poder criador e redentor. Ante esta santidade, Davi considera
sua condição desesperada e declara sua esperança na disposição divina: “conheço
as minhas transgressões”, mas eis “que te comprazes da verdade” e “me fazes
conhecer sabedoria”. Nesta verdade e nesta sabedoria é que o rei Davi, então,
fala de seu nascimento físico e da maneira como o pecado afetou sua carne
(“ossos”) como fala também de sua interioridade e de seu coração espiritual;
fala de seu espírito compungido e restaurado como fala também do testemunho e
do louvor de sua boca. É nessa mesma linha que Jesus diferenciou conceitos
matérias e imateriais ao mesmo tempo em que mostrava a relação alma/corpo: “O
que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito” (João
3.6). O apóstolo Paulo faz a mesma coisa: “Porque com o coração se crê para
justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação” (Rm10.10).
A
ideia do quadro abaixo – utilizado por Ed Welch em sala de aula e cuja
explicação foi feita em dois de seus livros de diferentes maneiras e diferentes
ilustrações (Edward T. Welch, Counselor´s
Guide to the Brain and its Diƨorderƨ, pp. 45-51; Blame It on the Brain?, pp. 56-61.) – foi adaptado para este estudo
e aponta quatro linhas mestras para a consideração da interação alma/corpo:
— problemas
da alma podem afetar o corpo;
— problemas
do corpo podem afetar a alma;
— problemas
da alma podem não afetar o corpo; e
— problemas
do corpo podem não afetar a alma.
Em qualquer dos casos, o
aconselhamento cristão trabalha com o coração da pessoa na confluência das
interagências alma/corpo.
Para tanto, o conselheiro
terá de conhecer alguma coisa sobre o funcionamento do corpo, bastante para
reconhecer as diversas influências e para entender as perspectivas médicas. A
linguagem popular comum às várias áreas de ajuda refere-se a algumas condições
psíquicas manifestadas no corpo como sendo de ordem psicossomática (gr., psyque/alma + soma/corpo). O termo é acurado, mas, para o nosso caso, teríamos de
cunhar outra palavra, como somatopsíquico, uma vez que há possibilidade de
ocorrer múltiplas afetações, em ambos os sentidos. Em um sentido, há bastante
proximidade de termos e significados na linguagem do aconselhamento cristão e
das psicologias seculares, especialmente daquelas mais tendentes a uma visão
médica de diagnósticos e prognósticos. Uma das razões desta proximidade é que o
objeto observado é o mesmo e a linguagem é comum a ambas as visões. O que muda
e faz toda a diferença na própria conceituação é que a perspectiva cristã leva
em conta o espírito humano e a perspectiva secular ignora essa dimensão da alma
(cf. 1Co 2.1-16). Sobre isto, o que o conselheiro cristão terá de considerar é
que a espiritualidade humana não pode ser separada da materialidade humana. O
aspecto espiritual não é uma área, às vezes clara às vezes nebulosa, que usa o
corpo como uma habitação para o “fantasma dentro da máquina”. Antes, é a
totalidade do atoestrutura humano no exercício dos dons e vocação comunicados ao
ser humano segundo a riqueza da graça de Deus “desvendando-nos o mistério da
sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer
convergir nele (...) todas as coisas, tanto
as do céu como as da terra” (Efésios 1:9-10; realce meu).
Resumindo, quando a Bíblia se
refere à unidade alma/corpo usando termos identificados ao aspecto físico –
coração, fígado, rins, intestinos, nervos, músculos, sangue, água, membros,
boca, ouvidos, e daí em diante – não está simplesmente utilizando um recurso de
linguagem, mas estabelecendo uma relação. Nesta relação, diz Ed Welch, o
conselheiro terá distinguir entre aspectos essenciais e aspectos assecionais (acessórios).
Wadislau Martins Gomes