Três firmas concorrem a uma
licitação para consertar uma janela de edifício público da Capital. A
primeira, do DF, depois de acurados estudos, dá um lance de R$ 25.000,00: 30%
de lucro, 15% de projeto e suporte técnico, 15% de material; 15% de mão de
obra, 5% de garantia, e 20% de “eventuais”. A segunda, de São Paulo, baseada em
sua larga experiência com janelas políticas e depois de intermináveis conversas
com técnicos e assessores, coloca R$ 250.000,00: 50% de lucro, 25% de projeto e
mão de obra, e 25% de “eventuais”. A terceira, de Alagoas, sem nenhum
pudor, adianta: R$ 2.500.000,00. Vence a última: 50% para o partido, 49% para a
contratada, e 1% para pagar a firma de Brasília para consertar a janela.
Da janela da praça, a visão
dos palácios políticos parece meio nublada, como piada de mau gosto. Em vez de
descortinar horizontes ensolarados, edifícios claros de luz e de moral, e
homens de bem no cumprimento da missão política, nosso povo, impassível, espera
passar o trem da alegria “só pra ver se sobra algum”. Ali e lá, as margens
plácidas ouvem gritos de libertação que soam mais como a sororoca da morte. São
vozes que se perdem em meio ao ruído dos últimos jargões políticos criadas
pelos mais recentes arquitetos do poder. Assim, a política – que deveria ser a ciência e arte de amparar as diversas
esferas de soberania: do indivíduo, da vizinhança, da escola, do comércio, do
estado etc. – virou sinônimo de propaganda manipulativa. Começa com o
horário político obrigatório e acaba no numerário político conveniente.
E a gente? Como é possível
começar a pensar em termos de uma política biblicamente correta?
Primeiro havemos de discernir
o pensamento do homem não-regenerado, do pensamento do homem regenerado. Isto,
Paulo faz em Efésios 2.1-4, considerando que Deus nos deu vida em virtude da
sua misericórdia e do grande amor com que nos amou. Como todos, estávamos
mortos em delitos e pecados, andando segundo o curso deste mundo, em plena
rebelião contra Deus (cf. Romanos 1.18-32). Não entretínhamos pensamentos de
verdadeira lógica nem de precisão “científica”, mas prosseguíamos no curso deste mundo após o príncipe da potestade do ar, do espírito
que agora atua nos filhos da desobediência. De fato, seguíamos, como alguns
cristãos desavisados ainda seguem, as inclinações da carne e dos pensamentos que
resultavam de uma ira pecaminosa contra Deus. A origem desse estado de coisas
não nos é desconhecida; é mais velha do que a última visão do lado de dentro do
Éden.
A serpente sugeriu que, em vez
da oposição excludente do bem (cuja existência é real, pois Deus é o bem) em relação
ao mal (cuja realidade é contingente ao rompimento com o bem), haveria uma
síntese inclusiva: Porque Deus sabe que
no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis
conhecedores do bem e do mal (Genesis 3.5). Desde então, o desvio cresceu e
permeou toda a cultura. Adam Smith, quando deu forma ao pensamento capitalista,
não fugiu aos cenários do motivo grego da separação entre graça e natureza.
Tomando a ética de trabalho e produção dos comerciantes cristãos permitida pela
graça divina, Smith elaborou um sistema em que a natureza nobre do labor seria
mostra suficiente da graça. Aberta a porta, a sanha individualista do pecado
assumiu o controle da estrada. Esse é o caminho, também, de Platão/Sócrates e
Aristóteles a Hegel/Marx e Rosa Luxemburg, e de decadência da velha esquerda
após a frustração da do “destino inexorável” da deusa História em meio aos
jogos revolucionários da nova esquerda e do moderno liberalismo.
Mesmo depois da Queda, a mão
de Deus não desamparou a humanidade. As maldições do cap. 3 de Gênesis implicam
punição, mas não dispensam a graça do Criador. Primeiro, há a promessa de
redenção – Porei inimizade entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça,
e tu lhe ferirás o calcanhar – Gênesis 3.15 – de acordo com o propósito
eterno. Como diz Efésios 1.6-10, Deus nos concedeu gratuitamente o Amado para
que refletíssemos o louvor da glória de
sua graça. Não sem obra fomos remidos, mas pelo trabalho produtivo do único
Criador, Vida e Luz dos homens (cf. João 1.1-14); e não sem revolução, mas com
o preço do único sangue derramado possível de fazer a justiça e de vencer a
morte, segundo a riqueza de sua graça.
Assim, em Cristo convergem todas as coisas, tanto
as do céu como as da terra.
Segundo, há as maldições, de
Gênesis 3, como indicadores de uma nova ordem decaída, recebidas por uns como
uma maldade de Deus e, por outros, como graciosas placas de advertência ou
lombadas protetoras no curso do caminho. A primeira e básica advertência é: o teu desejo será para o teu marido, e ele
te governará (v. 16b); e dela se deriva o entendimento das demais, especialmente,
para o nosso caso: E a Adão disse: Visto que
atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não
comesses, maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento
durante os dias de tua vida (v. 17). A partir daí, duas forças, igualmente
“humanistas”, ignoraram a promessa da previdência divina da redenção: a da
perspectiva de injustiça notada nos caminhos do lado de fora do Éden e a
perspectiva do trabalho e da produção humana como impossíveis redentores.
O ponto é que, sendo
regenerados em Cristo Jesus, temos como certa a operação do seu Espírito em
toda e cada área da vida, como também disse o apóstolo Paulo (Efésios 2.13-22):
estávamos longe de Deus, separados dele e, por decorrência, uns dos outros, mas fomos aproximados pelo sangue de Cristo.
Sua proposta não é apenas uma idéia etérea, mas algo concreto em termos de
política, mais acertadamente, da política do reino de Deus manifestado em
Cristo. Ele é nossa paz mediante a qual somos unidos ao Pai e uns aos outros. Ele derribou a parede de separação, a
inimizade, abolindo a lei dos mandamentos que forçam as obras da carne, tanto
as de trabalho e produção individualistas quanto as de revolução e
homogeneização social. A exemplo da unidade evangélica – retratada no chamado
de Abraão para abençoar a terra por meio de ser o meio para o nascimento do
Messias Jesus e, nele, para ser o sal da terra e luz do mundo – os verdadeiros
filhos de Abraão (cf. Gálatas 3), isto é, os remidos do Senhor, evangelizamos a
paz. E novamente, não será por meio de uma lei de trabalho e produção nem de
uma lei de revolução e equidade que salgaremos e iluminaremos a terra, mas por
meio da pregação da verdade Deus em amor demonstrada na vida da igreja pautada
na política do reino (cf. Mateus 5 e 6). Se a igreja viver o fato de que já não
somos estrangeiros e peregrinos, mas
concidadãos dos santos e a própria
família de Deus, e se Cristo for a
pedra angular, no qual todo edifício, bem ajustado, cresce para santuário
dedicado ao Senhor, então o mundo será iluminado e a terra, salgada. Os
escolhidos verão a igreja como farol indicador do porto seguro, e os habitantes
da terra serão abençoados com o sal restaurador.
As gerações atuais terão
dificuldade para ver desta janela, pois as mudanças das paisagens ao longo do
caminho tomaram novas formas à medida que o discurso mudou a cada colisão com
as lombadas da maldição. Capitalismo e socialismo tornaram-se, cada qual, a
serpente do jardim do outro. Para uns, Deus seria o mal da humanidade e, para
outros, em nome de Deus
o mal seria praticado. Com toda certeza também, alguém encontrará pontos de
verdade na hermenêutica do mundo em ambas as perspectivas, dado que as duas
visões não poderiam evitar a graça de Deus. Contudo, a rebelião do pecado levou
os homens a suprimir a verdade de Deus e a falsificar suas próprias “verdades”
(Romanos 1.18-32). Assim, o problema que temos hoje não é o de uma oposição
entre capitalismo e socialismo, mas uma perversão da missão original do
indivíduo e o papel da sociedade na tarefa de reproduzir a glória de Deus tal
como grafada nos Dez Mandamentos, especialmente no resumo do Senhor: ...e, se há qualquer outro mandamento, tudo
nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Romanos
13.9).
Se tudo aquilo que vimos se
trata de uma velha disposição pecaminosa revestida de palavras novas, talvez
seja bem que coloquemos isto em outras palavras mais adequadas. Em vez de usar
direita e esquerda (que não diz nada em relação a nada) uso as palavras destra e canhota. Destra é apenas uma mão mais bem treinada para a maior
parte dos serviços e, canhota, uma mão treinada para alguns serviços. É certo
que tem gente ambidestra, mas ilustração é ilustração... Se considerarmos a
missão do homem segundo os termos dos estudos bíblicos teológicos utilizados
por Abraham Kyper, Herman Dooyeweerd e Cornelius Van Til, teremos que o homem é um ser religioso, atuante, receptivamente
criativo e ativamente redentivo, cuja missão é reproduzir a relação com Deus na
relação entre os homens. O homem é um ser religioso, e sequer Adam Smith ou
Karl Marx puderam escapar a isso. Eles foram tão religiosos quanto nós,
diferenciados apenas pelo objeto da fé. Historicamente, ambos cresceram em um
ambiente judaico cristão, sendo que Marx se rebelou contra o deísmo e Smith
valorizou um tipo de tradicionalismo. No entanto, não puderam se evadir à
teorreferência – todo homem é um ser religioso cuja referência é Deus, quer
para adorá-lo que para falsificá-lo em termos de ídolos (ver Atos 17.22). Da
mesma forma, o homem é um ser atuante,
criado para glorificar a Deus na obediência à sua verdade e na expressão do seu
amor, ambas as atuações calcadas na ordem para “guardar e cultivar” as obras
das mãos de Deus. Devido à Queda, porém, e seguindo o caminho de Caim, Marx, idolatrou
a história e a dialética hegeliana e, Smith, o trabalho e a produção. Ora, o
homem é um ser receptivamente criativo
e sua atuação jamais será autônoma, autocontida ou suficiente. Tudo vem do
alto, de Deus que criou todas as coisas e que as mantém na força do seu poder.
É exatamente essa dependência de Deus que torna possível a convivência entre os
homens em face da luta pelo pão de cada dia e, até mesmo, pelo ar que
respiramos (ver At 17.25-28). E, finalmente, o homem é um ser ativamente redentivo. Conforme o modelo do Criador, o homem anseia
consertar o que está quebrado. Há injustiça? Que haja equidade! Há necessidade?
Que haja trabalho e produção! Mas Marx o quis por meio de revolução, e Smith o
desejou por meio de obras – meios impossíveis para redimir o homem. Um
valorizou a sociedade como se fosse uma personalidade e, o outro, valorizou o
indivíduo e suas competitividades, não levando em conta, a canhota e a destra,
que, sem a paz de Deus e a unidade do Espírito em Cristo Jesus, o homem se
destrói e a sociedade fica sem seu elemento formador.
O certo é que, assim como um
quadro não será belo se cada pincelada não for bonita, assim também uma
sociedade não será bela se os indivíduos que a compõem não forem bonitos.
Bonitos, digo, da beleza do reflexo da glória de Deus. No caso, aqui, as
tendências políticas humanas apenas revelam a feiúra da nossa cara e a maldade
das nossas mãos. A destra buscando riquezas terrenas em detrimento das riquezas
espirituais, e, a canhota, desferindo murros contra Deus e acertando a própria
cara. Pelo menos, a destra admite que a adoração de Deus seja servida, mas, a
canhota, levanta-se contra tudo que se chame Deus, exceto a mão do partido que
pretende reger a sociedade.
Em uma análise realista, tanto a destra quanto a
canhota são religiosas e teorreferentes, quer cultuando ao Deus verdadeiro quer
cultuando a ídolos de reposição. Ambas são igualmente atuantes em termos da sua
ação sobre a realidade percebida. As duas são, da mesma forma, receptivamente
criativas, pois Deus é quem lhes concede a graça comum sem a qual nada poderia
ser feito. E são também ativamente redentivas no sentido de notar os erros e
tentar consertá-los, cada uma a sua maneira. Entretanto, a fim de serem bem
sucedidas, não lhes basta seguir uma forma de lei sem atentar ao princípio da
lei de Deus. Não lhes basta uma lei natural, a qual, como diz Vern Poythress,
“é realmente a lei de Deus, imperfeita e aproximadamente descrita por
investigadores humanos” (Poythress, Vern Sheridan. Redeeming Sociology, Wheaton, Il: Crossway, 2011, p. 75). De fato,
precisariam conhecer o princípio da lei, o próprio Senhor Jesus Cristo, sua
Palavra e sua obra redentora. Além disso, precisariam ter uma noção de
sociologia e de economia sob uma hermenêutica bíblica.
Wadislau Martins Gomes