Lança o teu pão sobre as águas...
Quando meus pais voltaram para os Estados Unidos, após 17 anos de
Brasil, deixaram livros e pertences que pretendiam
recuperar quando voltassem. Papai voltou sozinho para meu casamento, e deixou
mamãe sem casamento, ela e minha irmã adolescente sozinhas em terra estranha. Foi
finalmente decidido que Lau e e ficássemos com os pertences, pois seria muito
caro transportar para os States—mas descobrimos que quase tudo já tinha sido
vendido ou desfeito. Restaram os livros, (ninguém dá dinheiro para livro velho)
– esses deram continuidade a nossa biblioteca missionária. Um dia, porém, depois
que já tinham passado uns dez anos em casa, papai chegou e disse que ia pegar
de volta os livros – só que não tinha para onde levá-los, e acabou deixando
para nós aquilo que nos dava horas de estudo e apontava para enriquecimento de
nosso ministério da Palavra. As outras coisas se foram.
Entre os diversos tesouros bibliófilos, havia livros de partituras da
minha mãe, que tivera treinamento e talento musical, além de ser psicóloga com
mestrado em
educação cristã. Eu os apreciava, mas meu instrumento de
preferência sempre fora a voz, e não estudei piano com afinco – só para tocar
em casa, acompanhar ou dar incentivo aos meninos no culto doméstico. Amava cantar no coral, naquela época na
Igreja Presbiteriana Ebenezer, sob a regência criativa e habilidosa de Mary
Cleme.
Uma jovem da igreja, a quem amamos muito (mais tarde Wadislau realizou
seu casamento com um jovem pastor também estudante do IBPV), entre os diversos
que foram para a Palavra da Vida naquela época, estava se destacando como
pianista-organista, e eu lhe emprestei um livro de partituras para orgão, que
tinha sido de mamãe. Com o passar dos anos, ela e seu marido se mudaram,
Wadislau e eu nos mudamos (muitas vezes nesses últimos mais de quarenta anos!),
e perdemos o contato. De vez em quando soubemos notícias: ele em ministério
pastoral, ela como ajudadora idônea e destacando-se ao treinar outras pessoas
no louvor e adoração pela música enquanto criavam a família na Palavra de Deus.
... porque depois de muitos
dias o reencontrarás (Ec 11.1).
Reencontramo-nos nas redes sociais, eu e meu marido não mais jovens, ela
e o marido também não tão jovens, cada casal continuando no serviço do Senhor e
vendo os filhos repetir, eles mesmos, as lutas e glórias pelas quais nós
passamos anos antes. Recentemente ela comunicou comigo ter encontrado um livro
que eu lhe emprestara nos anos setentas, e que iria devolvê-lo. Eu sequer me
lembrava do livro ou de tê-lo emprestado. Tantos livros já desapareceram no
correr dos anos...
Fiquei surpresa quando abri o grande pacote enviado por SEDEX de
Londrina para Mogi das Cruzes. Ela nos mandara de volta um tesouro sem preço: o
volume de prelúdios e fugas das obras completas para órgão de Johann Sebastian
Bach, compiladas pelo médico, missionário e músico Dr. Albert Schweitzer,
publicado em (1912) 1940! Eu nem me lembrava que mamãe tinha essas partituras com
sugestões para a interpretação das composições. Sem capa, mas com apenas um
rasgo na última página – isso com certeza já tinha acontecido antes dele vir às
mãos de Nali, que cuidou com carinho e lembrou de devolver o que no meu coração
já tinha sido dado.
Mandei fazer uma cópia xerografada, não para pirataria, mas para
proteção. O original, encadernação com capa dura, e, a cópia, encadernação em
espiral para fácil manuseio. A duplicata vai para as mãos de minha nora
musicista, Adriana. A encadernada fica na Biblioteca Refúgio até que eu e meu
marido formos promovidos para o grande coral celeste e os bens da terra sejam
compartilhados com os descendentes que estiverem mais envolvidos com música
para a glória de Deus.
Apliquei o versículo que citei do Koheleth de Israel de forma ampla ao
que aconteceu com Nali e comigo, com as partituras e a música, com a fidelidade
de Deus e decorrente fidelidade de uma irmã em Cristo. Os judeus até o dia de
hoje usam esse versículo no início do ano novo (Rosh Hashanah) ao tomar
literalmente migalhas e pedaços de pão e jogar nos rios e córregos e se
envolver em obras filantrópicas e de misericórdia, na certeza de que o bem que
fizerem “voltará a eles depois de muitos dias”. Como cristãos, nossas obras não
são meio de salvação nem meio de garantir que nós também sejamos bem tratados
no final—mas fruto, resultado para o qual Cristo nos resgatou. Mas porque somos
feitura dele, criados em Cristo para as boas obras (Ef 2.8-10), nossos irmãos
muitas vezes nos presenteiam com graça de forma criativa, harmoniosa e
inusitada. Achei bem mais que migalhas –
encontrei Pão da Vida. E tenho certeza que Nali e Lauril, como Beth e Lau, têm
encontrado graça e misericórdia enquanto espalham a beleza de Cristo na
Palavra, na música, e na vida.
Elizabeth Gomes