terça-feira, outubro 22, 2013

REFORMA PROTESTANTE -- UMA LIÇÃO DE HISTÓRIA



Atente ao salmista: Elevo os olhos para os montes: de onde me  o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra (Sl 121.1-2). Observe que socorro não vem dos montes, mas do seu Criador! Não é uma declaração ultramontana? No entanto, está tão perto como um punhado de terra úmida na concha da mão. É exatamente disso que precisamos para entender o papel da Reforma Protestante do séc. XVI e a razão de sua permanência. Ela se alça como bandeira fincada em um ponto histórico da escalada. Entretanto, do outeiro de onde observamos a sua elevação e consequências na formação do atual pensamento moral, metafísico e epistemológico, muitas vezes, incorremos no erro de considerá-la como o monte de onde nos viria o socorro. É como quem, olhando de uma colina, vê o pico mais próximo como se fosse o mais alto, esquecido do que há no início e ao longo de toda uma cordilheira. Nada melhor do que o tempo passado e os efeitos observados para uma visão ampla e mais alta da história.

A fim de bem avaliar as perspectivas, a história maior, escrita por Deus, terá de ser vista de perto e de longe (“Acaso, sou Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não também de longe?” – Jr 23.23). Para isso, será preciso levar em conta, pelo menos, três aspectos dessa visada (Vant Til, Frame, Poythress):

Original de John Frame com base em argumento de Van Til,
utilizado por Vern Poythress e adaptado por WMG
(1) há uma tríade de soberania – o Senhor é quem cria e sustém a história, sempre em controle de toda a verdade, sempre presente em amor, e sempre com suprema autoridade sobre todas as suas obras (At 4.8; 17.24-27);
(2) há um aspecto normativo central – Deus revela a si mesmo e a sua vontade por meio da Bíblia, a qual é suficiente para o conhecimento e para a prática de vida; e, à sua luz,
(3) há uma tríade de dependência:
(a) um aspecto descritivo, significando que a pregação e recepção da Palavra de Deus, e a observação e constatação do homem, dependem da sua fidelidade à Palavra original;
(b) um aspecto situacional, significando que nada ocorre no vazio e de súbito, e que os fatos históricos atendem aos propósitos de Deus de criar um novo homem e uma nova humanidade (Ef 1.11; 2.10-22; 3.10-11); e
(c) um aspecto existencial, significando que os tempos e espaços entre ocorrências principais também estão cheios de significado para o homem interior (Ec 3.1-11; Rm 8.18-29; 2Co 4.16; Ef 3.16; 1Pd 3.4).

Bem viu Isaias, quando registrou a voz de Deus: “Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito” (Isaías 57.15). O profeta olhava para o Senhor dos montes e antevia o ponto mais alto da história. Apontava para Deus e “o seu beneplácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” (Ef 1.9-10). A ele “pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” – diz o salmista, perguntando: “Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar?” (Sl 24.1-3). E a Palavra responde: “Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas” (Ef 4.10).
Bem viram os reformadores, mais de mil e quinhentos anos depois do cumprimento profético, quando escalaram o “monte” da Reforma. Seus braços estendidos não declaravam outro socorro que não o do Senhor. Apontavam para um monte superior, para o Senhor e referência de todas as coisas. Ele é a revelação de Deus na história, a própria História, de quem Paulo disse “para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2.2-3). E Jesus mesmo resumiu o princípio da história apontada pelos reformadores: “Vim do Pai e entrei no mundo; todavia, deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16.28).

Aspecto normativo. “Quem me vê a mim vê o Pai” – disse Jesus (Jo 14.9), sobre quem João declarou: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, completando que ele é a razão e o propósito da criação, a vida e a luz dos homens (Jo 1.1; ver 2-5). Isso também Jesus explicou: “porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste” (Jo 17.8). Assim, Jesus Cristo é a Palavra viva, “o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser [de Deus], sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, [que] depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas (Hb 1.3). Portanto, a base normativa da totalidade e do ápice da história da primeira Reforma do séc. I AD é o próprio Senhor Jesus Cristo e sua Palavra Escrita. Sobre a Palavra, Pedro testifica: “que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pd 1.20-21). E Paulo reafirma a necessidade de permanecer nela a fim de obter sabedoria para a salvação pela fé em Cristo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra (ver 2Tm 3.14-17).

Aspecto descritivo. O apóstolo Paulo reafirmou o aspecto normativo ao dizer que havia recebido o evangelho “não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dentre os mortos” (Gl 1.1). Falou também de outro aspecto, descritivo, a que pessoas como nós, que não viram e ouviram diretamente o Cristo ressurreto, deveríamos nos ater, isto é, o evangelho pregado (Gl 1.8, 9). A segunda reforma, do século XVI, cumpriu exatamente essa orientação apostólica, como Calvino disse: “Nossa fé nele não será firme se não compreendermos seu divino poder (...) assim, não devemos receber friamente o fato de que ele veio de Deus, e também entender por que razão e propósito ele veio – para que nos fosse sabedoria, e santificação, e justiça, e redenção” (Calvin’s Commentary, John 16.28).

Aspecto situacional – refere-se aos montes dos quais se avista o monte do Senhor. Assim como muitos montes figuram o monte do Senhor – Sião, Oliveiras, Gólgota, etc., – assim também muitos “montes” da história marcaram muitas reformas. O apóstolo Paulo, com respeito à primeira Reforma, usa o argumento de Abraão para mostrar como a perfeita e boa Lei de Deus atua em relação à situação decaída dos homens, e como Cristo sofreu a maldição da lei em nosso lugar: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão” (Gálatas 3.8). E argumenta (Gl. 4.22-31) que Abraão teve dois filhos, um da mulher escrava, nascido escravo, e outro, da livre, nascido da promessa. “Estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são duas alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera para escravidão”. Agar, ele diz, figura ambos, o monte Sinai e Jerusalém escrava de legalismo; “mas a Jerusalém lá de cima é livre”. Em outra situação, o diálogo de Jesus com a mulher samaritana é elucidativo: ela disse: “Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar.” E Jesus respondeu: “...podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus” (Jo 4.20-22). Portanto, o que se depreende é que tanto a Reforma do séc. XVI quanto todas as reformas necessárias ao longo da história, para serem coerentes com o aspecto normativo e asseguradas no aspecto descritivo, têm manter em mente um aspecto situacional: que a verdadeira lei de Deus, em Cristo e em sua Palavra, apresentam duas perspectivas excludentes: ou vemos a graça de Deus em todo esplendor da verdade em amor, ou olhamos para miragens de lutas inglórias, carnais e escravizantes. No primeiro caso, fica a admoestação de Pedro:
... santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal. 1 Pd (3.15-17).

Aspecto existencial. Certamente há nos montes da terra um elemento de luta e de dor. Jesus, Filho de Deus e Filho do homem, enfrentou essas coisas ao entrar no mundo. Dele, que é a verdade e o amor, a justiça e a bondade, foi dito: “Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações” (Lc 2.34-35). Dominava-lhe a graça e a ira do Pai, como disse João: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14) e “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (3.16). Paulo também diz o mesmo, em outras palavras: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento (Rm 2.4)? E: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça (1.18). Paulo ainda reflete esse sentimento em moldes humanos, quando diz: “lutas por fora, temores por dentro” (2Co 7.5). Certamente os reformadores do séc. XVI refletiram essa tensão. Em uma carta a Falais, Calvino escreveu:
No presente estado de coisas, reconheço a intenção de nosso Deus de privar-nos de um Evangelho triunfante, a fim de nos constranger a lutar sob a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Contentemo-nos com o fato de que ele reitera seu método de lidar de maneira miraculosa com a preservação da igreja, por seu próprio poder e sem ajuda de arma carnal (Library of Geneva. Vol. 106, July 1517).

No momento em que entendermos que “a nossa luta não é contra o sangue e a carne” (Ef 6.12) e derivarmos da primeira Reforma do séc. I a importância de nosso momento, então, reconheceremos os benefícios da Reforma do séc. XVI.


Wadislau Martins Gomes

quinta-feira, outubro 10, 2013

FALSAS EMOÇÕES

 

Um dos rótulos comuns que as pessoas “colam” sobre nós, mulheres, é que somos exageradamente emocionais – enquanto o gênero masculino se caracterizaria por uma racionalidade límpida e clara. Sempre resisti a esse juízo, embora tenha de admitir que me emociono à toa. Lau zombava de mim porque, quando recém casada, ao assistir a um filme em desenho animado (Peter Pan), eu chorei com os dizeres de Wendy sobre o que é uma mãe. Estava felicíssima por meu estado civil, não tinha saudade do tempo em que estava debaixo da asa da mamãe, e a perspectiva de que eu mesma em breve seria mãe animava meu coração. Mas chorei. Às vezes choro até hoje com livros ou filmes melosos e superficiais. Choro com músicas tocantes, com fotos que falam mais que mil palavras. Meus sentimentos se movem com coisas belas, coisas feias, coisas tristes, coisas alegres. Manteiga derretida sou eu, seja na frustração de observar minhas crescentes limitações, sejam nas vitórias e derrotas que – meninas, eu vi! – ou de observar na vida de pessoas amadas.
 
Além da emoção que brota de sentimentos misturados, característicos de minha humanidade criada à “imagem de Deus, mas decaída”, existem também falsas emoções que sobrevem quando as pessoas rebaixam uma as outras com formas de linguagem que ocultam o sentimento verdadeiro, e não nos deixam plenamente cônscios da diferença entre o que é verdade e o que é falso. É o exemplo do kitsch – uma obra de arte que não vem como resposta ao mundo real, mas é uma fabricação projetada para substituí-lo. Vemos muito evangelho kitsch nos dias atuais – apresentações bonitas, sanitizadas do que seja atraente no evangelho de Jesus Cristo, mas que negam o poder e a glória da cruz e da ressurreição. Tanto o produtor (escritor, pregador, promotor, pensador superficial) quanto o consumidor (nós ouvintes, leitores, curtidores) conspiram para persuadir um ao outro de que o que sentem nessa obra kitsch de escrita, postagem, pregação, compartilhamento – seja algo profundo, importante e verdadeiro. A ênfase na comunicação mudou, do conteúdo do que se diz para o poder que fala por meio dele – não obstante a verdade ou inverdade do que é e pode ser.
 
Reconheço diferenças culturais e de gênero, algumas mais de educação do que biológicas, outras, do ensino bíblico transmitido de geração em geração – e lembro que desde Eva, uma sensibilidade para com os relacionamentos caracterizaria nossa persona (Gn 3.16) enquanto Adão procuraria desbravar, vencer espinhos e multiplicar o rumo que tinha pela frente (Gn 3.17-19). Mas ambos tinham o mandato cultural de cultivar e guardar, de cuidar, preservar e alargar os limites. Ambos também são compostos de raciocínios segundo a imagem de Deus junto a sentimentos segundo o coração do Senhor da Criação, que desde seu princípio fez tudo muito bom, um jardim de delícias e de criatividade multiplicadora.
 
No âmbito da cultura atual, constatamos a falsidade reinante e cada vez mais crescente, e chegamos a perguntar se não seria possível continuar indo com as ondas como nesse rio caudaloso que quer nos dominar e afogar. Não seria possível continuar na falsidade das emoções esdrúxulas? Isso não seria preferível às vidas autênticas e sinceras em que as paixões humanas florescem sem controle, muitas vezes em plenitude de maldade? Quem sabe o destino da cultura seja induzir a todos para um sonho de Disneyland sempre que a perigosa cobiça por realidade nos assoberba. Afinal, quando se olha as instituições culturais nas democracias hodiernas, podemos achar que seu propósito é de falsear, e que isso se faz para o bem e para a ignorante felicidade de todos.
 
Dick Keyes, em Seeing through Cynicism, disse: “A fé cristã partilha, pelo menos parcialmente, de certos diagnósticos comuns de juízos cínicos... não existem cantos escondidos de inocência neste nosso mundo. Existe neste mundo o sofrimento aparentemente sem propósito, sem sentido, de desperdício; existe, misturado ao amor, beleza, paz, prosperidade e validade – ódio, caos, pobreza e morte. Tais realidades não são distribuídas conforme alguma aparente igualdade ou justiça. A maioria dos observadores honestos poderá ver junto ao Pregador de Eclesiastes: ‘Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio, pois o tempo e o acaso afetam a todos’ Ec 9.11)”.
 
Quero trazer às minhas emoções e ao meu raciocínio dois princípios:
               
a) Quanto às emoções:
 
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus;antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra,e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.5-11).
               
E b) quanto ao raciocínio:
 
Seja bendito o nome de Deus, de eternidade a eternidade,porque dele é a sabedoria e o poder; é ele quem muda o tempo e as estações, remove reis e estabelece reis; ele dá sabedoria aos sábios e entendimento aos inteligentes. Ele revela o profundo e o escondido; conhece o que está em trevas, e com ele mora a luz. A ti, ó Deus de meus pais, eu te rendo graças e te louvo, porque me deste sabedoria e poder (Dn 2.20-23).
 
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.1-2).
 
...antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal. (1Pe 3.15-17).
 
A razão e a sensibilidade estão juntas sob a esfera da vida no Espírito. Porque no fim, nossa emoção e nossa razão têm de andar juntos sob o senhorio de Jesus Cristo!
 
Elizabeth Gomes

terça-feira, outubro 01, 2013

A REFORMA E O BOI DE BRIGA



As excelentes aproximações de cristãos que conhecem a Reforma Protestante e reconhecem suas bases na Escritura Sagradas são como festas de louvor e ação de graças. São festas santas em que a obra de Cristo é exaltada, como disse Calvino citando Oséias: “‘Tira a iniqüidade’, diz ele – eis a remissão dos pecados! ‘E ofereceremos como novilhos os sacrifícios de nossos lábios’ – eis a satisfação!”

Contudo, no contraponto, há figurações de outros que seguem o passo sem saber para onde. Parece mais festa de circo ou parque de diversões no arraial: rojões, banda ou violeiros, corrida do boi, e os inevitáveis rasga roupas. “Dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair dela” – diz o cabra macho. Nas ruas, isso parece até coisa bonita quando o boi não investe e dá uma carreira no matuto.

É claro que, desde o início da Reforma, havia os que davam marradas, e Calvino não fugiu à luta, pegando os bois pelos chifres. Sadoleto, Servetus e outros sentiram a doma do reformador. O próprio apóstolo Paulo deu nome aos bois: por exemplo, Demas, Alexandre, o latoeiro, etc. Judas, “servo de Cristo e irmão de Tiago”, que também não tinha medo de boi matreiro, exortou-nos a batalhar “diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”. Mas ainda que condenasse os homens ímpios que transformavam a graça de Deus em libertinagem, brutos sem razão, ele também advertiu: “Contudo, o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse: O Senhor te repreenda!” (Judas 9.)

Adversários são herança da fé, como o Senhor Jesus preveniu: “Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros” (João 15.20).  Mas lembre-se do que ele também disse: “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mateus 5.44-45).

Calvino (Institutas 3.7.6) diz:

O Senhor preceitua que se deve fazer o bem a todos em geral, os quais em grande parte são muitíssimo indignos, se forem estimados em seu próprio mérito. Mas aqui a Escritura nos apresenta uma excelente razão, quando ensina que não se deve atentar para o que os homens mereçam em si próprios, pelo contrário, deve-se levar em conta a imagem de Deus em todos, à qual devemos toda honra e amor. Entretanto, essa mesma imagem deve ser mais diligentemente observada nos domésticos da fé [Gl 6.10], até onde foi ela renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo.

E em outro lugar, cita Agostinho: “É de admirar-se”, diz ele, “a paciência de Cristo, porque admitiu a Judas ao banquete no qual instituiu a figura de seu corpo e sangue e deu aos discípulos”. (Institutas 4.17.21).

A diferença do trato bíblico e do trato ímpio é que o servo de Cristo enfrenta cara a cara os repreensíveis e os inimigos da fé, como Paulo fez com Pedro e a Elimas, o mágico.  Não se faz calar alguém com a força do pensamento à distância nem com a de argumentos, pois o coração rebelde só vê o que está presente e próximo. Quando houver necessidade de que, como disse Van Til,  uma voz se levante “em defesa das pequenas ovelhas de Jesus”, será bem que haja um contato pessoal, por carta ou telefone (lembrando sempre de que cartas são documentos e telefonemas são vazios de testemunho). No caso de a pessoa repreendida ser um irmão, poderá se arrepender e ter a paz restaurada; caso contrário, deverá ser denunciada à igreja para disciplina. No caso de ser um impenitente, então será preciso que seja exposto para vergonha sua e proteção dos irmãos. No entanto, isso deverá ser feito com o respeito devido a todo ser humano, por causa da imagem de Deus, nele deformada e, em nós, reformada à imagem de Cristo.

Paulo coloca bem isso em 2Coríntios 10.1-18, quando roga, invocando a “mansidão e benignidade de Cristo”, que não tivesse de ser ousado quando presente com os crentes daquela igreja. Ele preferia ser humilde em presença e ousado para servi-los à distância.

Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo.

Mas, se preciso fosse, queria que todos os crentes estivessem prontos, como ele estava disposto, “para punir toda desobediência, uma vez completa a vossa submissão”. E diz ainda: “para que não pareça ser meu intuito intimidar-vos por meio de cartas” e “Considere o tal isto: que o que somos na palavra por cartas, estando ausentes, tal seremos em atos, quando presentes”. Sobretudo, a preocupação do apóstolo não é com sua própria figura ou apresentação, nem com sua “missão”, mas com a medida da glória de Cristo. Não temia ultrapassar os seus limites, uma vez que ele mesmo havia pregado o evangelho aos coríntios, considerando-os dentro de sua esfera de ação juntamente com a tarefa de ir além das fronteiras. Entretanto, tinha um cuidado com o equilíbrio da ousadia e da humildade. A chave? “Aquele, porém, que se gloria, glorie-se no Senhor. Porque não é aprovado quem a si mesmo se louva, e sim aquele a quem o Senhor louva”.

Wadislau Martins Gomes