terça-feira, março 29, 2011

DUAS PÍLULAS PARA CARECA



CALVINISMO É COISA QUE DÁ NA CABEÇA DA GENTE

Eu me vergo. Foi mal, o trocadilho. Contudo, atente bem a essa parábola da careca: Quando os cabelos do homem lhe caírem da cabeça, é calva; contudo, está limpo. Se lhe caírem na frente da cabeça, é antecalva; contudo, está limpo.  Porém, se, na calva ou na antecalva, houver praga branca, que tira a vermelho, é lepra (Lv 13.40-42).

É que, às vezes, a confusão existe até para quem “está careca de saber”. Passa o tempo, e o brilho da cabeça do antigo mestre vai recebendo tantos chapéus – pré-Dort, pós-Dort, neo, novo e de novo – que, uma hora, ninguém mais sabe o que é que eles cobrem. Arminianismo vira estilo de corte, tulip vira flor enroscada na orelha e calvinismo vira espelho de vaidades. Sem ofensa – você não vê que até eu ouso meter a cara nessa conversa?

No entanto, há luzes e reflexos de glória que valem a pena de ser citados e repetidos. As perspectivas de Abraham Kuyper, por exemplo, são de fazer a gente tirar o chapéu para tanta simplicidade. Não o simplismo de definições de barbearia tocadas a tesoura e pente, mas a simplicidade própria dos mestres que penetram as complexidades da cabeça. Tomado do gênio de Calvino, Kuyper levou a sério a soberania de Deus sobre todas as áreas da vida e, literalmente, “fez” escola e política calvinistas. Ele foi o fundador da Universidade Livre de Amsterdam e Primeiro Ministro da Holanda (1901-1905). Suas Stone Lectures são valiosas. Correndo risco de mostrar mais ondas de cabelo do que dobras de cérebro, arrisco uns volteios inspirados na apresentação do neo-calvinista holandês.

 (1) os temas de “Calvino” e “calvinismo” se diferenciam tal como cabeça e cabelo. O primeiro fornece o pensamento teológico apologético para a prática cristã, o segundo, o desdobramento prático dessa teoria. Aquele declara a experiência com os princípios da Palavra de Deus; este promove a experiência da vida calcada nesses princípios. Calvino instituiu sobre fé e prática cristã; o calvinismo vem desenvolvendo essa instrução nas diversas áreas da vida.

(2) Há, pelos menos, três aspectos do calvinismo a serem considerados (como cuidado com a higiene e saúde do cabelo). (i) O aspecto confessional, o qual dificilmente poderá superar o tratamento fornecido pelos documentos da reforma e pós-reforma, tais como confissões de fé e catecismos, sempre atuais na medida em que são fiéis à Bíblia. (ii) O aspecto de movimento, como rótulo denominacional, amado ou odiado em diferentes círculos, o qual não deveria ser elemento de base nem alvo de transformação. Finalmente, (iii) o calvinismo que considera a soberania de Deus sobre todas e cada área da vida e que promove a fé receptora da graça especial na ação da igreja e a da graça comum na atuação no mundo.

(3) Esse último, sim, é uma experiência de novidade de vida calcada na obra imutável de Cristo (cf. Rm 6.4). Nesse sentido, o calvinismo apresenta uma reforma religiosa sempre renovada. Como estilos de penteado. Poderíamos até chamar de aspecto hermenêutico: Deus apresenta na Bíblia a hermenêutica do seu próprio pensamento, utilizando a hermenêutica de homens divinamente inspirados, para que procedamos à hermenêutica de sua hermenêutica em nosso tempo e lugar, a fim de que em tudo e para todos seja manifesta a glória de sua graça.

Complicado, não é? Mas não desanime: vá desembaraçando esse emaranhado com o pente da Palavra, o óleo do Espírito, os movimentos das mãos em oração, vá batendo cabeça com os irmãos na unidade de Cristo, o cabeça da igreja, e você vai ver como logo a face do evangelho se ilumina. Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós (2Co 4.6-7).


CARECA BONITA É UMA ARTE, É UMA ARTE, É UMA ARTE

Ele não disse que careca era coisa bonita, mas o bom Calvino considerou, sim, que a arte é ingênita ao conhecimento humano, tão universal que não tem limites na mente e na natureza senão o reflexo da graça de Deus. A isso aponho à guisa de ilustração: como calva na cabeça; nem todos têm completa, bela, brilhante, mas todos têm ideia da graciosidade dos cabelos e da falta engraçada que eles fazem. Se meu jeito de dizer a coisa foi demais para tanta cabeça, leia o próprio reformador:

A esse reconhecimento o próprio Criador de nossa natureza amplamente nos desperta
enquanto cria os imbecis, nos quais põe à mostra de que dotes a alma do homem
excele quando não inundada de sua luz, luz que em todos, tão natural subsiste, que
a cada um é dádiva inteiramente graciosa de sua beneficência... Com efeito, a invenção ou o ensino sistemático das próprias artes, ou seu conhecimento mais íntimo e mais eminente, que é próprio de poucos, por certo que não é sólida prova da perspicácia universal. Contudo, porque atinge indistintamente a piedosos e a ímpios, com razão se conta entre os dons naturais (Institutas 2.14).

“Pegou”? Arte é dom gratuito, comum a todos os homens. Não há como definir arte em termos cristãos ou seculares. O que existe é arte boa, que louva a glória da graça de Deus (Ef 1.6), ou arte má, que louva a rebeldia humana contra a beleza da santidade do Senhor (Sl 96.9). E veja que não estou falando de coisas bonitinhas e feinhas. Quando a Bíblia canta ou pinta a natureza criada, ela o faz para glória do Criador. Quando declara a feiura da queda, em verso ou prosa, revela a beleza da redenção. Quando pinta um quadro à luz da verdade, ilumina a tristeza da mentira e a alegria da justificação. Tudo isso não é teoria evangelical, mas graça comum a que todo joelho tem de se dobrar e confessar: Jesus Cristo é Senhor!

Além da subida santidade de Deus e da maravilha que ele permite ao coração humano, o tema da arte tem reflexos em questões tão terrenas quanto nossa calva saudosa de cabelo. Explico: nosso conceito pessoal de arte não é motivado pelo belo de Deus, mas por nossas vaidades – seja da basta cabeleira seja da careca, de que, como disse o poeta, “uns são comensais e outros, adversos”. Por isso, dividimos, a nosso gosto, as artes sacras e as seculares. Permitimos, até mesmo, o “cântico” medíocre na forma musical e na letra antibíblica, e proibimos a música “secular”, mesmo que seja bonita e verdadeira naquilo que comunica.

E não é só. Arte é coisa que se estende além dos sentidos, à atuação humana. Francis Schaeffer já falava da “beleza da verdade e beleza do amor”. Na verdade, o amor humano – amor que é dado e não requerido – é uma arte que brota do conhecimento do amor de Deus em Cristo. Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome. Não negligencieis, igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com tais sacrifícios, Deus se compraz (Hb 13.15-16).

Calvinismo também é uma arte. Arte que não veio de Calvino, mas do Espírito, por meio de Paulo: Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões... Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente .... e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá  (Rm 14.1,5; Fp 3.15).

Wadislau Martins Gomes

quarta-feira, março 23, 2011

QUE ESPERANÇA?


Na terrinha que me viu crescer havia uma expressão: “Que esperança.” Era um desespero! “Vamos lá?” “Que esperança.” “Posso?” “Que esperança”. Criança que ouvisse dessa (des)esperança podia tirar o cavalo da chuva. Eu não entendia muito bem essa coisa de cavalo na chuva, mas que esperança? Parece que ninguém também sabia. Um dia, caipira emprestado, eu selei o zaino e, na porteira do curral, esperei pelos filhos que ainda apertavam os arreios dos animais. Um chuvisco de molhar bobo começava a incomodar, e eu chamei: “Vamos lá?” Mas que esperança? Quando puxei o cavalo para debaixo do telheiro, foi que atentei: perdida a esperança, só resta tirar o cavalo da chuva.

A questão é que esperança não é coisa que se perca; ou tem ou não tem e, se tem, não perde. Ninguém pode perder o que não tem. Num destes dias, esperando a patroa, na calçada em frente de um armarinho, senti os primeiros pingos da chuva anunciada e resolvi entrar no carro. É claro que, quanto a ela, não tenho jamais de tirar o carro da chuva. Depois de 45 anos, a confiança em que ela cuida de não demorar (é um pé lá outro aqui) é maior do que minha paciência. Foi ela mesma que me ensinou, certa vez, quando me ouviu dizer “estou perdendo a paciência”: “Você não pode perder o que não tem”. Você entendeu? (Não vá dizer “que esperança”.) Esperança que é esperança é feita de certeza, confiança, paciência, tudo bem ajustado como deveriam ser arreio de montaria ou mecânica de carro.

Se me perguntassem o que considero ser o aspecto mais sensível do processo de aconselhamento bíblico, eu diria: a esperança. Davi, no Salmo 20, encorajando o coração atribulado, falou da segurança e do socorro de Deus, da aceitação que sempre achamos nele, e da esperança da realização dos nossos desígnios segundo sua vontade. Ele disse: Uns confiam em carros, outros, em cavalos; nós, porém, nos gloriaremos em o nome do Senhor, nosso Deus. Eles se encurvam e caem; nós, porém, nos levantamos e nos mantemos de pé (vv. 7-8). O que pode ser percebido, aí, é que a esperança, entre a certeza da fé e a atuação do amor, é o elemento que fortalece o coração para as transformações que Deus intenta para nosso caráter (“nos gloriamos em o nome do Senhor”).

Isso é tratado por Paulo, em Romanos 5.1-5. Uma vez seguros no socorro provido na justificação em Cristo, temos paz com Deus (aceitação) e, pela fé, certeza do acesso a essa graça. Assim, gloriamo-nos na esperança da glória de Deus (v. 2c). Os conceitos de glória e gloriar devem ser bem entendidos. O Antigo Testamento usa palavras que os associam ao “peso do Senhor” e “brilho do Senhor” e “beleza do Senhor”; o Novo Testamento emprega palavras que falam do “brilho do Senhor”, “iluminação do Senhor”, e virtude do Senhor comunicada aos que são chamados a participar de sua própria natureza (cf. 2Pd 3-7). Paulo continua, dizendo que, na tribulação, o processo de reflexão do caráter de Deus é exercitado na perseverança (em obedecer à sua vontade revelada), realizado na experiência (aplicação dos seus mandamentos e promessas) – tudo motivado pela esperança que não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo (v. 5; cf. Rm 15.4).

Tem muita gente querendo tirar o cavalo da chuva. Dizem: meu marido, minha esposa, meu filho, meus pais, minha igreja, meu problema, meu pecado: “que esperança!” Uns dizem que acabou o amor que jamais acaba (1Co 13.8), outros, que está chegando ao fim a paciência que jamais tiveram, e outros ainda, que não conseguem perseverar no bom caminho ou vencer tentação ou provação. O que esse povo precisa é de uma experiência com a bondade de Deus que o leve a obter da sua Palavra o motivo de uma esperança realista (cf. 1Pd 2.1-5). Uma esperança de sol e chuva: de glória que brilha mais do que o sol do meio dia e que cai em graça como chuva na sede da terra.

A Bíblia diz: Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar. Portanto, meus amados, fugi da idolatria (1Co 10.13-14). Ora, Deus é quem socorre, liberta, transforma, capacita, fornece recursos e dá força – crer menos do que isso configurará idolatria.

Uns confiam que o pecado lhes proporcionará a recompensa que esperam, que o divórcio lhes trará a liberdade que desejam, que o conselho dos ímpios os levará a bom termo, que a própria vontade os conduzirá à vitória; outros, que não haverá poder que os ampare ou que os transforme ou que controle a situação. Tudo isso é idolatria de quem pensa menos de Deus e muito do homem. Só há uma maneira para vencer essa idolatria, e essa é uma de desesperar da esperança, quer otimista quer pessimista, para esperar no Deus dos céus contra toda esperança da evidência terrena (cf. Rm 4.18).

Lembre-se sempre desta declaração de Paulo: Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus (Fp 1.6); e disto: Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus; e disto: Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus. Essa esperança certamente nos ensinará e capacitará para a lida com cavalos e carros e com as pessoas e o nosso próprio coração.

Wadislau Martins Gomes.

sexta-feira, março 18, 2011

TERREMOTO, TSUNAMI E DESASTRE NUCLEAR, NO CORAÇÃO




Gilgamesh, irado contra a injustiça, apela ao deus Shamash
 
Desta vez, terremoto e tsunami não causaram tanta devastação nas almas já prevenidas com as escoras da autojustiça. Tal como o Japão é louvado pelas soluções empregadas em edificações com vistas à proteção desses “atos de Deus”, assim há quem se previna da ação de Deus, fundamentando ataques e defesas na própria consciência (cf. Rm 2.15). Aqui, no soco firme dos brasis, alguns trataram de abalar a imutabilidade de Deus a fim de explicar tremores do mal e inundações de dor que assolam a alma (Pv 4.1-27). Poderá ser até que não dê em nada; mas, pelo menos, acha o estulto, a mão erguida contra o céu é prova da insatisfação com tudo isso que está aí fora!

Ao ler coisa escrita por quem, um dia, disse crer na soberania e na bondade de Deus e, hoje, muda sua interpretação da Palavra revelada, fico pensando que o terremoto e o tsunami conseguiram chegar aqui. Vai ver que é por que a crença não era a de uma fé em Deus, mas fé na fé. Isso, porque nossa crença básica (a que realmente entretemos no fundo do coração e que controla nosso comportamento) é a base com que interpretamos o mundo e seus eventos. Sem os óculos da graça de Deus, tudo o que o homem vê é desgraça.

Quando atrita com as camadas superficiais da insegurança humana, essa (des)crença profunda abala a esperança. Essa ira, muitas vezes, provoca explosões que derramam lavas ferventes e montanhas de água fria sobre a fé. Outras vezes, como se fossem acidentes nucleares, liberam radiações de falsa piedade, que consomem a mente e o coração do povo machucado pela conturbação da natureza decaída e da alma ferida pela carência da glória de Deus.

Não desejo argumentar com aquele que pretenda mudar a natureza do Deus eterno em função de uma incompreensão da realidade presente. Com esse, se ele quiser, poderemos conversar em privado, a fim de que as sujidades do coração não aflorem publicamente, expostas pelos cataclismos existenciais. Quero, sim, falar aos cristãos que possam se abalar com as palavras de falsos repórteres observadores das fronteiras entre o divino e o humano.

Aos verdadeiros adoradores de Deus, digo que o mal não tem existência própria, mas é o bem quebrado na catástrofe do Éden. Quando Deus perfeito criou o mundo fora de si mesmo, criou algo bom por natureza, mas menos que perfeito, pois só ele é Deus. No entanto, em seu desígnio eterno, decretou que, na própria essência dessa criação – o Filho, o Verbo – um dia, nós, menos que perfeitos, seriamos feitos permanentemente bons por meio da obra redentora de Cristo: encarnação, vida de obediência, morte vicária, ressurreição e ascensão. Hoje, o bem quebrado mostra uma face avassaladora e sua nuvem radioativa impede que o bem de Deus seja visto. Mas, para aquele a quem a Luz do mundo afasta as trevas da descrença, todo mal é coberto de graça consoladora e promove o bem dos que são chamados à fé.

O verdadeiro crente não teme o homem e o mundo, mas é tomado da sabedoria do temor do Senhor. Humilde, ante as forças pujantes da natureza decaída e a sobrepujante graça do Criador e Redentor, o verdadeiro crente adora o Deus da Criação, em vez de adorar a criação, temendo-a e reinterpretando Deus à sua falsa luz. Deixa-se transformar pela ação do Espírito de Deus, em vez de pretender mudar o Deus que age, e sempre com justiça e bondade.

Certamente, dói na alma a dor que dói concreta na vida do meu irmão de carne e sangue. Entretanto, dói mais ver que essa dor é capaz de abalar a fé do meu irmão no sangue de Jesus Cristo e na unidade do Espírito. Dói ver a desesperança inundando e levando de roldão a casa mal fundada no coração em que deveria estar a casa na Rocha. Dói ver o amor do coração humano destruído e incapaz de anunciar com efetividade a segurança e confiança em um Deus que é o único movedor imóvel e transformador imutável.

Esse diz com os filhos de Corá:

Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações. Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os montes se abalem no seio dos mares; ainda que as águas tumultuem e espumejem e na sua fúria os montes se estremeçam. Há um rio, cujas correntes alegram a cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo. Deus está no meio dela; jamais será abalada; Deus a ajudará desde antemanhã (Salmo 46:1-5).

Esse diz, como verdadeiro profeta: Creio, meu Criador, Redentor e Senhor, que estás no controle, presente e em autoridade sobre toda a terra e toda massa de grande águas, Ouvi-te na voz da tua justiça e meu íntimo se comoveu, entendi a podridão dos meus ossos e que em silêncio, devo esperar o dia da angústia. O filho de Deus considera a justiça de todos os atos de Deus quando considera seu próprio coração. Ainda que o terremoto seja de 8.9 e que venham os tsunamis e que a ameaça nuclear me bafeje o rosto, e os homens se rebelem contra ti e me acusem de ingenuidade ou obscuridade, todavia, eu me alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação. O Senhor Deus é a minha fortaleza. (Cf. Habacuque 3.15-9).

Wadislau Martins Gomes

quarta-feira, março 09, 2011

O FILHO DO TECELÃO*

O Tecelão -- Van Gogh

- Papai! - a voz de Andros soou estridente - De onde vêm os teares?

Em meio à modernidade da viscose e da microfibra, um artesão preservava como herança de família, o gosto e a lida na tecelagem manual. Para muitos, coisa para turistas. Para ele, opção de vida. Pouco dinheiro, muita satisfação. O filho talvez até tomasse gosto e mantivesse a tradição. À frente, no tear de pisos, o ritmo dos liçaróis cruzando os fios da teia tensos no órgão e no cilindro soava como pulsação de vida. Pé no pedal e mãos no pente e na lançadeira, o tecelão entretecia, coração, músculos e nervos na confecção da trama. Havia uma antecipação de tecido na urdidura, uma expectação de vida como teia de desígnio, trama de propósito, tapeçaria de história - quando tecelão e tecedura se encontravam na obra criativa.

O filho do tecelão, menino, desejava reatar a amizade com o pai. Não sabia sequer por que a atração pelo trabalho a que o pai dedicava o dia inteiro, a vida inteira. Sobe, lança, desce, ajusta... Os fios partidos naquela manhã já haviam sido arrematados. Só lhe restavam culpa e admiração - o pai consertava fios partidos.

- Sei lá. Este já foi do meu pai, e antes dele, do pai do meu pai... Parece que esteve aí o tempo todo...

- O tempo todo? Então o tear é “que nem” Deus.
O tecelão não gostava de conversar com o filho sobre Deus. “Sabe lá se ele existe?” Houve um tempo em que ele mesmo tinha crido. Foi quando ele ainda era menino, e o pai ameaçava, dizendo:

- Olha que Deus está vendo. Qualquer coisa errada, ele !

deveria ser alguma coisa terrível. Assim como se Deus estivesse pronto para abater a vítima incauta. Depois, percebeu que Deus não estaria sempre atento. Havia coisas que ele não via, ou que talvez deixasse passar. E nesse caso, o não era tão pronto. Mais tarde, achou que Deus talvez nem mesmo existisse.

- Não, o tear não é Deus. Não vê que eu preciso operar o tear. Se ele fosse Deus, ele é quem me operaria. Se eu não trabalhar nele, o tear não faz nada.

A conversa estava indo para fora de controle. Quem conhece menino sabe que não se pode dar trela.

- Então, quem fez o tear?

- Não sei, menino. Apareceu aí.

O menino guardou a noite toda a figura de um imenso tear, o primeiro de todos os teares, que se fez presente aí – seria por acaso? Talvez um vento cósmico, como aqueles da aula de ciências, que tenha trazido para cá moléculas promissoras de teares? Tempos sem conta teriam passado para que elas se juntassem num tear? Mas como saberiam disso, antes que fossem? Que sentido? Que desígnio as juntaria e entreteceria? Que propósito? Coisa demais para uma cabeça adolescente.

– Talvez, fosse mesmo Deus, que criou todas as coisas, aquele que criou o tear.

Eu fiz a terra e criei nela o homem; as minhas mãos estenderam os céus (Isaías 45.12) – segredou-lhe o Espírito, mas Andros não estava pronto para ouvir.

Na manhã seguinte, o pai exibiu, orgulhoso, a obra acabada. Fio a fio juntado sob sua autoridade de tecelão. Uma torcida aqui, um arremate ali, uma trançada, um aperto, cores vivas nas formas centrais, cores esmaecidas no fundo, pareciam ter sido despertadas da matéria. Madeira, algodão, ferro e mãos haviam despertado qualidades estéticas e emoções inusitadas.

- Não artesanato - ele disse -, obra de arte!

Mais tarde, o filho voltou ao pai que admirava a tapeçaria estendida sobre a mesa, e perguntou:

- Pai, eu nasci ou sempre estive aí?

Vinte anos se passaram. Com o filho do tecelão cresceram também as perspectivas, as expectativas, os erros, as preocupações, as perguntas.

- De onde a motivação para urdir a vida e imaginar o homem? - indagou, homem feito.

- Do sempre... do nada... do acaso - responde o século.

- Qual o sentido?

- Nenhum...

- Então, qual o propósito?

- Existir? Viver?

- Um tear tecendo tapetes sem chão, tapeçarias sem parede, gente sem origem e sem destino...

Durante os anos, o filho do tecelão viu muitos fios rompidos. Desobediências, mentiras, desafetos. Pequenos erros na urdidura da vida, muitos dos quais ficaram ali, despercebidos, e tantos outros que o pai ajudara a consertar. “Será que Deus existe?”, substituiu a questão: “Será que Deus sabe?”

- Melhor com Deus? Melhor sem Deus? Como o reatamento? Onde a rematação? - pergunta o filho do tecelão.

- Sem Deus. Ao acaso. Da melhor maneira. Impossível de saber - responde o século, impaciente.

- E eu? Apareci aqui?

Se vista apenas como um tear surgido de um estado impessoal e inconsciente - que, de maneira inusitada, processa qualidades estéticas, éticas, morais, e que consegue indagar a respeito de sua própria natureza - a personalidade humana separada de Deus parece um conceito bem perverso. O pensamento secular precisou atribuir fixidez à personalidade humana porque acredita que o mundo exista ao acaso, sem desígnio ou propósito. Reduziu tudo a carne e sangue. Entretanto, esse reducionismo não satisfaz a ânsia de ser, de conhecer, de pertencer. Tal como os liçaróis, abrindo, cruzando e prendendo a trama, a alma anseia movimentos de vida.

– Deve haver algo mais para que seja vida. Algo além de mim mesmo, algo dentro de mim, algo que se estenda para o mundo; um sentimento, um tremor de vida – murmurou Andros.

– Deus não existe – declarou o século, rabugento.

Soltos, sem as amarras da crença, os fios da imaginação não apreendem o sentido do tecido. Antes, promovem a rebeldia da descrença que dá à luz a autonomia; nutrem a reversão insidiosa da infidelidade que faz crescer a solidão; e estabelecem a inversão da origem e da finalidade do ser na descrença de tudo. A despersonalização secular do ser humano, sua carência de um referencial além da própria humanidade, acaba sendo aborrecida e irada, pois não oferece explicação para a pessoalidade que perpassa tudo quanto existe.

Certamente, somos todos tecelões de vida no tear de Deus. Jamais explicaremos o tear nem os fios nem a urdidura, mas seguimos pela vida criando cenas e desempenhando papéis, rompendo fios que em vão tentamos remendar. Sobretudo, não nos deixam as laçadas das indagações existenciais, o desejo de reatamento, e a expectação de um arremate final. O desespero solitário e impotente do homem sem Deus tece explicações avessas, imagina pontos e nós para modificar o sentido das cenas.

Davi, no Salmo 139.19-22, expôs a frustração de sua alma em relação àqueles que desconhecem o controle, a presença e autoridade de Deus. Pediu a Deus que desse cabo do homem que perverte a verdade em mentira por causa da rebelião insidiosa que movem contra o Senhor de todas as coisas. Suas respostas às indagações mais prementes do ser aborreciam a sua alma. Os inimigos de Deus eram os seus inimigos. Por quê? Porque ele conhecia ao Deus de sua criação e sustentador da sua vida, e ao poder da sua comunhão, e sabia que, sem ele, não há expectativa de vida, de reatamento de arremate feliz.

Quanto a ele mesmo, Davi revelou entendimento sobre o tema da pessoalidade e de sua referência divina. Sabia-se conhecido e sondado por Deus. Seus motivos e comportamentos estavam à mostra diante daquele que penetra os pensamentos. O rei Davi entendia a linguagem difusa na criação, a revelação do próprio Criador. Antes que a palavra lhe chegasse à língua, Deus já a conhecia. O Deus que criou o mundo por meio de sua palavra cujo poder agora o cercava por trás e por diante e por cima com mão criadora e mantenedora. Ele sabia que Deus é o ambiente do homem e que está no completo controle de todas as coisas e seres. Não conhecia o pastor de ovelhas a palavra de Deus? Não sabia pela revelação da Escritura que o Deus de seus pais - de Abrão, de Isaque e de Jacó, o Deus pessoal - havia criado o mundo segundo sua pessoalidade e como um ambiente próprio para a pessoalidade humana? Uma linguagem tácita o cercava por todos os lados, revelando um conhecimento que, ainda que não pudesse ser exaustivamente conhecido, não poderia também ser evitado. Para onde fugir do conhecimento de Deus? Sua presença lhe era patente em todas as dimensões. Seu controle estava na mecânica dos dias e na física da luz e das trevas. Especialmente, era-lhe evidente a sua autoridade. Deus era o seu Criador pessoal.

Pois tu formaste o meu interior tu me teceste no seio de minha mãe. Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as tuas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem; os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda. Tais pensamentos eram preciosos para o rei, grande e incontáveis (Salmo 139.1-18, 23-24).

O Tecelão da vida havia formado e tecido o salmista no ventre de sua mãe com fios e padrões ósseos e celulares, e o próprio código genético, de modo “assombrosamente maravilhoso”. Ele sabia acerca da extensão da soberania do seu Criador e da profundidade da pessoalidade impressa na sua obra de criação, especialmente, na criação da pessoa humana. Sabia que o Senhor e Criador da complexidade de cada um dos seus dias, tem autoridade sobre a vida do homem para escrever a sua história e para pedir contas dela.

Wadislau Martins Gomes

* Do livro de W. M. G., Personalidade centrada em Deus, em preparo.